Início do(s) tempo(s), fim do(s) tempo(s)

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por John Zerzan

Assim como a noção mais obsessiva dos dias de hoje é a da realidade material do tempo, o tempo existente por si mesmo foi a primeira mentira da vida social. Tal como sucedeu com a natureza, o tempo não existia antes de o indivíduo ter sido separado dele. Uma reificação dessa magnitude – o surgimento do tempo – constitui a Queda: o advento da alienação, da história.

Spengler observou que uma cultura pode ser diferenciada das outras pelos significados intuitivos atribuídos ao tempo¹, e Canetti notou que a regulamentação do tempo é o atributo primordial de todo governo². Todavia, o próprio movimento da comunidade para a civilização também está aí implicado. O tempo é a linguagem fundamental da tecnologia e do espírito de dominação.

Hoje em dia, a aceleração frenética do tempo, bem como o fracasso da “solução” de espacializá-lo, está revelando-o como uma força artificial e opressiva, juntamente com seus corolários, o Progresso e o Devir. Mais concretamente, a tecnologia e o trabalho estão sendo revelados pela sujeição palpável ao tempo. Em todo caso, a pressão pela dissolução da história e do domínio do tempo não vinha sendo tão forte desde a Idade Média e, antes disso, desde a Revolução Neolítica, que estabeleceu a agricultura.

Quando a humanização da tecnologia e do trabalho revela-se sob a forma de proposições dúbias, a humanização do tempo em si mesmo também é colocada em questão. As questões que emergem são: como as opressões básicas podem ser efetivamente controladas ou reformadas? E por que não abolidas?

Concordando com Hegel ao citá-lo, Debord escreveu: “O humano, ‘o ente negativo que é somente na medida em que suprime o Ser’, é idêntico ao tempo.”³. Essa equiparação está sendo rejeitada, uma situação que talvez seja mais bem elucidada ao se considerar as origens, a evolução e o status atual do tempo.

Se “toda reificação é um esquecimento”⁴, na vívida frase de Horkheimer e Adorno, parece igualmente verdadeiro que todo “esquecimento” – no sentido de uma perda de contato com nossas origens atemporais, de uma constante “queda no tempo” – é uma reificação. Todas as outras reificações, de fato, decorrem dessa.⁵

É possível que ninguém tenha definido satisfatoriamente a objetificação chamada tempo, bem como sua trajetória, devido às imensas implicações envolvidas. Tomando o tempo como ponto de partida, adentrando a história, passando pelo progresso, e daí para a assassina idolatria do futuro, que agora extermina espécies, idiomas, culturas e, possivelmente, o mundo natural como um todo. Este ensaio não deve seguir adiante sem antes declarar um objetivo e uma estratégia: a sociedade tecnológica somente poderá ser dissolvida (e impedida de se reciclar) através da anulação do tempo e da história.

“A História é um eterno devir e, por conseguinte, um eterno futuro; a Natureza é aquilo que veio-a-ser e, portanto, está eternamente no passado.”⁶, tal como colocado por Spengler. Esse movimento também é bem captado pela afirmação de Marcuse de que “A História é a negação da Natureza.”⁷, movimento esse cuja aceleração crescente tem tornado o humano totalmente alheio a si mesmo. No coração desse processo encontra-se o conceito dominante da temporalidade mesma, que era desconhecido para os primeiros humanos.

Lévy-Bruhl nos oferece uma introdução: “Nossa ideia de tempo parece ser a de um atributo natural da mente humana. Mas isso é uma ilusão. Tal ideia praticamente não existe quando se trata da mentalidade primitiva […].”⁸. H. Frankfort e H. A. Frankfort concluíram que o pensamento primevo “não conhece o tempo enquanto duração uniforme ou como uma sucessão de instantes qualitativamente indiferentes.”⁹. Em vez disso, os indivíduos primitivos “viviam em um fluxo de experiência interior e exterior que trazia consigo, a cada momento, um conjunto diferente de eventos coexistentes e que, assim, mudava constantemente, quantitativa e qualitativamente.”¹⁰.

Meditando a respeito do crânio de uma mulher caçadora-coletora das planícies, Jacquetta Hawkes foi capaz de imaginar o “presente eterno no qual todos os dias, todas as estações da planície permanecem em uma unidade duradoura.”¹¹. De fato, a vida era vivida em um presente contínuo¹², ficando-se subentendido que o tempo histórico não é inerente à realidade, mas é antes uma imposição sobre ela. O próprio conceito de tempo como uma “linha” abstrata e contínua, desdobrando-se em uma progressão infinita que interliga todos os eventos enquanto mantém-se independente deles, era totalmente desconhecido.

A expressão “atemporalidade articulada”, de Henri-Charles Puesch, é um conceito útil, que reflete o fato de que a consciência de intervalos, por exemplo, existia na ausência de um senso explícito de tempo. Claramente, a relação do sujeito para com o objeto era radicalmente diferente, antes que a distância temporal invadisse a psique. A percepção não era o ato isolado que agora conhecemos, envolvendo a distância que possibilita a exteriorização e a dominação da natureza.

Evidentemente, podemos perceber os reflexos dessa condição original nos povos tribais sobreviventes, em graus variados. Wax disse sobre os Índios Pawnee do século XIX: “A vida possuía um ritmo, mas não uma progressão.”¹³. A língua Hopi não faz qualquer referência ao passado, ao presente ou ao futuro. Avançando em direção à história, o tempo torna-se explícito no pensamento e na linguagem do povo Tiv, mas não é uma categoria de ambos, assim como outro grupo africano, o povo Nuer, não possui conceito de tempo como uma ideia separada. A queda no tempo é uma queda gradual; assim como os antigos egípcios mantinham dois relógios, um medindo os ciclos cotidianos, o outro o tempo “objetivo” uniforme, o calendário balinês “não nos diz em que momento do tempo estamos, mas, em vez disso, em que tipo de tempo nos encontramos.”¹⁴.

Em termos da humanidade caçadora-coletora original¹⁵ à qual nos referimos acima de um modo geral, algumas palavras podem ser pertinentes, especialmente na medida em que tem havido uma “reviravolta quase total na ortodoxia antropológica.”¹⁶ a respeito dela desde o final da década de 1960. A vida antes das primeiras sociedades agrícolas de cerca de 10000 anos atrás havia sido considerada como sendo sórdida, embrutecida e curta, mas as pesquisas de Marshall Sahlins, Richard Lee e outros mudaram drasticamente essa visão. O modo de vida forrageador representa agora a sociedade da abundância original, no sentido de que ele promovia a vida e os prazeres com um mínimo de esforço; o trabalho era considerado estritamente como um ônus social e o espírito da dádiva predominava.¹⁷

Essa era, portanto, a base do não-tempo, o que nos traz à mente o comentário de Joost Meerloo de que “Os primitivos vivem tão-somente no agora, tal como todos nós vivemos de novo sempre que estamos nos divertindo.”¹⁸ e a afirmação de Nietzsche de que “Todo prazer quer eternidade – quer profunda, profunda eternidade.”.

A ideia de um estado original de prazer e perfeição é muito antiga e é praticamente universal.¹⁹ A lembrança de um “Paraíso Perdido” – e, com frequência, uma escatologia concomitante que requer a destruição da existência subsequente – pode ser distinguida na ideia taoista de uma Era Dourada, na Cronia e na Saturnália de Roma, nos Campos Elísios dos gregos, e no Jardim do Éden e a Queda dos cristãos (provavelmente derivados das lamentações sumérias pela felicidade perdida em uma sociedade à deriva), para se mencionar apenas alguns casos. A perda de uma situação paradisíaca com o surgimento do tempo revela-o como a maldição da Queda, a história considerada como uma consequência do Pecado Original. Norman O. Brown sentiu que “A separação é, portanto, a Queda – a queda na divisão, a mentira original.”²⁰, Walter Benjamin que “a origem da abstração […] remonta à Queda.”²¹. Por outro lado, Eliade distinguiu na experiência xamânica uma “nostalgia do paraíso”, ao examinar a crença de que “aquilo que o xamã é hoje capaz de fazer em estado de êxtase” podia, antes da hegemonia do tempo, “ser feito por todos os seres humanos de modo concreto.”²². Não é de se admirar que Loren Eiseley tenha identificado nos povos aborígines “esforços consideravelmente efetivos de eliminar ou ignorar tudo aquilo que não diga respeito à busca transcendente pela atemporalidade, a venturosa terra da imutabilidade.”²³, ou que Lévi-Strauss tenha se deparado com sociedades primitivas determinadas a “resistir desesperadamente a qualquer modificação em sua estrutura que permitiria que a história irrompesse em seu seio.”²⁴.

Se tudo isso parece um tanto quanto arrebatado para um tópico tão sóbrio como a questão do tempo, alguns clichês modernos podem nos dar uma indicação em relação a onde a ausência de sabedoria realmente se encontra. John G. Gunnell nos diz que “O tempo é uma forma de ordenar a experiência.”²⁵, um paralelo exato com a afirmação igualmente falaciosa da neutralidade da tecnologia. Ainda mais extrema em sua lealdade ao tempo é a alegação bizarra de Clark e Piggott de que “as sociedades humanas diferem das sociedades animais, em última instância, por sua consciência da história.”²⁶. Erich Kahler sustenta que “Já que os povos primitivos praticamente não têm qualquer senso de individualidade, eles não possuem propriedade individual.”²⁷, uma noção tão completamente errônea quanto a afirmação de Leslie Paul de que “Ao apartar-se da natureza, o humano liberta-se da dimensão do tempo.”²⁸. Kahler, diga-se de passagem, põe muito mais os pés no chão quando observa que “a participação primitiva do indivíduo originário em seu universo e em sua comunidade começa a se desintegrar” com a aquisição do tempo.²⁹ Seidenberg também detectou essa perda, na qual nosso ancestral “percebeu-se desviando-se cada vez mais de sua harmonia instintiva ao longo da trajetória precária de uma síntese instável. E essa trajetória é a história.”³⁰.

Retornando à dimensão mítica, tal como na antiga lembrança generalizada de um Éden original – cuja realidade era a vida caçadora-coletora –, deparamo-nos com as práticas mágicas encontradas em todos os grupos étnicos e sociedades primitivas. O que temos aqui, em contraposição ao modo de tecnologia regido pelo tempo, é uma intervenção atemporal voltada ao “restabelecimento das uniformidades habituais da natureza.”³¹. É esse interesse humano fundamental na regularidade, e não no devir dos processos da natureza que vale a pena enfatizar. O totemismo está relacionado à magia; nele, o parentesco entre tudo o que é vivo é primordial; com a magia e seu contexto totêmico, a participação na natureza está na base de tudo.

“No totemismo puro”, declara Frazer, “[…] o totem [ancestral, guardião] nunca é um deus e nunca é venerado.”³². O passo da participação à religião, da comunhão com o mundo às divindades exteriorizadas para adoração, é parte do processo de alienação do tempo emergente. Ratschow atribuiu à ascensão da consciência histórica a responsabilidade pelo colapso da magia e sua substituição pela religião³³, uma conexão essencial. Nesse mesmo sentido, portanto, Durkheim considerava o tempo como sendo um “produto do pensamento religioso.”³⁴. Eliade percebeu essa separação progressiva e relacionou-a à vida social: “os mais extravagantes mitos e rituais, Deuses e Deusas dos mais variados tipos, os Ancestrais, as máscaras e sociedades secretas, os templos, as castas sacerdotais, e assim por diante – tudo isso é encontrado em culturas que ultrapassaram o estágio de coleta e de caça de animais de pequeno porte […].”³⁵.

Elman Service reconheceu que as sociedades de bando do estágio de caça e coleta eram “surpreendentemente” igualitárias e marcadas pela ausência não apenas de chefes autoritários, mas também de especialistas, de qualquer tipo de intermediários, de divisão do trabalho e de classes.³⁶ A civilização, tal como Freud alertou repetidamente, com a alienação em seu cerne, foi impelida a destruir o antigo primado da satisfação atemporal e não-produtiva.³⁷

Naquela longa época original, a alienação começou a aparecer primeiramente sob a forma de tempo, embora a resistência de várias dezenas de milhares de anos tenha adiado sua vitória definitiva, sua conversão em história. A espacialização, que é a força motriz da tecnologia, pode ser remontada às mais antigas experiências infelizes de privação por meio do tempo, aos esforços iniciais para se compensar a passagem ao tempo através da extensão no espaço. O mandamento no Gênesis que diz “Sede fecundos e multiplicai-vos.” foi considerado por Cioran como sendo “criminoso”³⁸. Possivelmente, ele foi capaz de reconhecer nessa imposição a primeira espacialização – a espacialização dos próprios humanos –, visto que pode-se dizer que a divisão do trabalho e as outras separações subsequentes decorrem do grande crescimento das populações humanas, com o colapso progressivo da vida caçadora-coletora. O modo burguês de se afirmar isso é o clichê de que a dominação (os governantes, as cidades, o Estado, etc.) foi a consequência natural das “pressões populacionais”.

No movimento do caçador-coletor para o nômade, podemos reconhecer a espacialização, por volta de 1200 a.C., sob a forma do carro de guerra (e da figura do centauro). O embevecimento com o espaço e com a velocidade, como uma forma de compensação pelo controle exercido pelo tempo, obviamente continua conosco até hoje. Esse enlevo é uma espécie de sublimação; mais simplesmente, a energia ansiosa do senso de tempo é convertida em dominação espacialmente.

Com o fim de uma existência nômade, a ordem social é fundada sobre as bases da propriedade fixa³⁹, o que implica uma nova espacialização. Aqui entra Euclides, cuja geometria reflete as necessidades dos primeiros sistemas agrícolas, tendo colocado a ciência no caminho errado ao considerar o espaço como o conceito fundamental.

Na tentativa de uma tipologia da sociedade igualitária, Morton Fried declarou que ela não era dotada de uma divisão do trabalho regular (e, portanto, não possuía um poder político daí derivado) e que “Quase todas essas sociedades baseiam-se na caça e na coleta e não apresentam períodos de colheita significativos em que grandes reservas de alimento são armazenadas.”⁴⁰. A civilização agrícola transformou tudo isso, introduzindo a produção através do desenvolvimento de excedentes e da especialização. Sustentado pelos excedentes, o sacerdote media o tempo, delineava os movimentos celestes e previa os acontecimentos futuros. O tempo, controlado por uma poderosa elite, era utilizado diretamente para controlar a vida de um grande número de homens e mulheres.⁴¹ Os mestres dos primeiros calendários e o conjunto de conhecimentos a eles associado “tornaram-se uma casta sacerdotal separada”⁴², de acordo com Lawrence Wright. Um exemplo perfeito é o dos Maias, extremamente obcecados com o tempo; G. J. Whitrow nos diz que “dentre todos os povos antigos, os sacerdotes Maias desenvolveram o mais elaborado e preciso calendário astronômico e, assim, conquistaram uma enorme influência sobre as massas.”⁴³.

Em termos gerais, Harry Elmer Barnes está absolutamente correto ao afirmar que os conceitos formais de tempo surgiram com o desenvolvimento da agricultura.⁴⁴ Aqui nos vem à mente a famosa maldição da agricultura do Antigo Testamento (Gênesis 3:17-18) no momento da expulsão do Paraíso, que anuncia trabalho e dominação. Com o avanço da cultura agrícola, a ideia de tempo tornou-se mais definida e conceitual, e diferenças na interpretação do tempo constituíam uma linha divisória entre o estado de natureza e o de civilização, entre as classes instruídas e as massas.⁴⁵ O tempo é reconhecido como um modo definidor dos novos fenômenos neolíticos, tais como expressos no comentário de Nilsson de que “os povos civilizados antigos surgem na história com um sistema de contagem do tempo plenamente desenvolvido.”⁴⁶, e na observação de Thompson de que “a forma do calendário é fundamental para a forma da civilização.”⁴⁷.

Os babilônios deram ao dia 12 horas, os hebreus deram à semana sete dias, e a antiga noção de tempo cíclico, com sua aspiração parcial a um retorno às origens, sucumbiu gradualmente ao tempo como uma progressão linear. O tempo e a domesticação da natureza avançaram, a um custo sem precedentes. “A descoberta da agricultura”, conforme afirmou Eliade, “provocou tensões e crises espirituais cuja magnitude é quase inconcebível para a mente moderna.”⁴⁸. Um mundo foi destruído graças a essa parceria virulenta, mas não sem uma imensa luta. A exemplo de Jacob Burckhardt, devemos abordar a história “com o olhar de um patologista”; a exemplo de Hölderlin, ainda tentamos descobrir “Como isso começou? Quem trouxe a maldição?”.

Retomando a narrativa, a resistência floresceu até mesmo no período da civilização grega. Na verdade, até mesmo em Sócrates e Platão e no primado da filosofia sistemática, o tempo era ao menos mantido a distância, precisamente porque “esquecer” as origens atemporais ainda era considerado como o principal obstáculo à sabedoria ou à salvação.⁴⁹ A obra clássica The Idea of Progress [A ideia de progresso], de J. B. Bury, chamou a atenção para a “crença generalizada” na Grécia de que a humanidade havia decididamente degenerado a partir de uma “era dourada de simplicidade”⁵⁰ inicial – uma barreira perene ao progresso da ideia de progresso. Christianson deparou-se com a atitude antiprogresso em um período ainda mais tardio: “Os romanos, não menos do que os gregos e os babilônios, também aferraram-se a várias noções de retorno cíclico no tempo […].”⁵¹.

Com o Judaísmo e o Cristianismo, contudo, o tempo foi intensificado, de modo muito claro, no sentido de uma progressão linear. Aqui houve um distanciamento radical, na medida em que a urgência do tempo abateu-se sobre a humanidade. Seus atributos básicos foram delineados por Agostinho, não por coincidência, em um dos mais catastróficos momentos da história – o colapso do mundo antigo e a queda de Roma.⁵² Agostinho atacou definitivamente o tempo cíclico, retratando uma humanidade unitária que avança irreversivelmente através do tempo; aparecendo por volta de 400 A.D., essa é a primeira teoria da história de relevo.

Como para enfatizar a insígnia cristã sobre o tempo linear triunfante, logo é possível encontrar, na Europa feudal, o primeiro caso da vida cotidiana regida por horários estritos: o monastério.⁵³ Funcionando como um relógio, organizado e absoluto, o monastério confinava o indivíduo no tempo assim como suas paredes o confinavam no espaço. A Igreja foi o primeiro poder a combinar a medição do tempo com um modo de vida ordenado temporalmente, um projeto ao qual ela se dedicou com vigor.⁵⁴ A invenção do relógio com engrenagens e de badaladas pelo Papa Silvestre II, no ano 1000 foi, portanto, totalmente oportuna. A Ordem Beneditina, em particular, foi considerada por Coulton, Sombart, Mumford e outros como talvez a fundadora original do capitalismo moderno. Os Beneditinos, que em seu auge dirigiram 40000 monastérios, ajudaram de um modo crucial a subjugar a energia humana ao compasso e ao ritmo regulares e coletivos da máquina, o que nos faz lembrar que o relógio não é meramente um meio de acompanhar as horas, mas de sincronizar a ação humana.⁵⁵

Na Idade Média, mais especificamente no século XIV, a marcha do tempo enfrentou uma resistência sem precedentes em termos de alcance, muito provavelmente, desde a Revolução Neolítica da agricultura. O valor dessa afirmação pode ser julgado por meio de uma comparação entre os desenvolvimentos básicos do tempo e da revolta social, que parece indicar um choque claro e profundo entre ambos.

Com a chegada dos anos de 1300, o tempo quantificado e oficial arrogou-se o direito de colonização da vida moderna; o tempo então foi totalmente abstraído em uma série uniforme de unidades, pontos e seções. A tecnologia de escapamento Vergê/Foliot do início do século produziu o primeiro relógio mecânico moderno, símbolo de uma era de confinamento qualitativamente nova que agora emergia à medida que as associações temporais eram separadas por completo da natureza. Os relógios públicos surgiram, e por volta de 1345, a divisão das horas em 60 minutos e dos minutos em 60 segundos tornou-se comum⁵⁶, entre outras novas convenções e práticas por toda a Europa. A nova exatidão promoveu uma sincronização mais rigorosa, essencial para um novo nível de domesticação. Glasser comentou a respeito da “perda de poesia e de imediação na experiência pessoal” causada pelo novo poder do tempo, e refletiu que essa manifestação do tempo substituiu o movimento e o esplendor do dia por sua utilização como uma unidade temporal.⁵⁷ Os dias, as horas e os minutos tornaram-se intercambiáveis como as peças e os processos de trabalho padronizados que eles prefiguraram.

Essas mudanças decisivas e opressivas devem ter estado na raiz das grandes revoltas sociais que as acompanharam. Os trabalhadores do ramo têxtil, os camponeses e os pobres das cidades abalaram as normas e as barreiras da sociedade até o ponto da dissolução, em revoltas tais como a de Flandres entre 1323 e 1328, a Jacquerie da França de 1358 e a revolta inglesa de 1381, para se mencionar apenas as três mais proeminentes. O caráter milenarista da insurgência revolucionária nessa época, que na Boêmia e na Alemanha persistiu até mesmo até o início do século XVI, ressalta o elemento temporal inequívoco e nos traz à lembrança exemplos mais antigos de um anseio por uma condição original e não-mediada. O anarquismo místico dos Irmãos do Livre Espírito na Inglaterra tentava alcançar o estado de natureza, por exemplo, tal como o famoso provérbio reiterado pelo rebelde John Ball: “Quando Adão arava e Eva fiava, quem era então o fidalgo?”. Bastante instrutiva é uma meditação do místico radical Suso, de Colônia, por volta de 1330:

‘De onde você veio?’ A imagem (que apareceu para Suso) responde: ‘Eu venho de lugar nenhum.’ ‘Diga-me, o que você é?’ ‘Eu não sou.’ ‘O que você quer?’ ‘Eu não quero.’ ‘Isto é um milagre! Diga-me, qual é o seu nome?’ ‘Sou chamado de O-Selvagem Sem-Nome.’ ‘Para onde a sua intuição leva?’ ‘À liberdade irrestrita.’ ‘Diga-me, o que você chama de liberdade irrestrita?’ ‘Quando uma pessoa vive de acordo com todos os seus caprichos sem distinção entre ela mesma e Deus, e sem ater-se ao antes ou ao depois […].’⁵⁸.

O desejo “de ter todas as coisas em comum”, de abolir as classes e a hierarquia, e, mais ainda, o discurso explicitamente antitempo de Suso, revelam os mais extremos desejos da revolta social do século XIV e demonstram seu elemento de rejeição do tempo.⁵⁹

Esse momento decisivo no período medieval tardio também pode ser compreendido por meio da arte, na qual o espaço mensurado da perspectiva acompanhou o tempo mensurado dos relógios. Anteriormente ao século XIV, não havia tentativas de representar a perspectiva porque o pintor tentava registrar as coisas tais como elas são, e não tais como elas se nos afiguram. Depois do século XIV, um agudo senso de tempo infunde a arte; “Nem tanto um lugar, quanto um momento é estabelecido para nós, e um momento fugaz: um ponto de vista no tempo mais do que no espaço.”⁶⁰, tal como descrito por Bronowski. De modo semelhante, Yi-Fu Tuan chamou a atenção para o fato de que a pintura de paisagens, que surgiu somente no século XV, representou um reordenamento fundamental tanto do tempo quanto do espaço com sua perspectiva.⁶¹

O movimento é realçado pela transformação que a perspectiva realiza da semelhança do espaço em um acontecimento no tempo que, retornando ao tema da espacialização, mostra de uma outra forma que houve um “salto quântico” no tempo. O movimento tornou-se novamente uma fonte de valores em decorrência da derrota da resistência ao tempo no século XIV; um novo nível de espacialização estava aí implicado, tal como pode ser mais claramente observado no surgimento do mapa moderno, no século XV, e na era subsequente das grandes viagens. A expressão de Braudel “a guerra da civilização moderna contra o espaço vazio”⁶² pode ser mais bem compreendida sob essa luz.

“O novo juízo de valor acerca do Tempo, que então irrompia à superfície, de fato tornou-se um dos mais poderosos fatores pelos quais o pensamento ocidental, no fim da Idade Média, foi transformado […].”⁶³, foi o modo como Kantorowicz expressou a nova e fortalecida hegemonia do tempo. Se nessa ordem temporal objetiva do tempo oficial, legal e fatual, somente àquilo que é espacial fosse dada a possibilidade de real expressão, todo pensamento seria necessariamente eclipsado, bem como subjugado. Boa parte dessa reorientação pode ser encontrada na simples observação de Le Goff a respeito do início do século XV, de que “a primeira virtude do humanista é o senso de tempo.”⁶⁴.

De que outra forma a modernidade poderia se concretizar senão através das novas dimensões alcançadas conjuntamente pelo tempo e pela tecnologia, fruto maduro e genuíno da junção entre ambos? Lilley observou que “as mais complexas máquinas produzidas pela Idade Média foram os relógios mecânicos.”⁶⁵, assim como Mumford considerou que “o relógio, e não o motor a vapor, é a máquina crucial da era industrial moderna.”⁶⁶. Marx também localizou aí as bases iniciais da indústria mecanizada: “O relógio é a primeira máquina automática aplicada a fins práticos, e toda a teoria da produção de movimento regular foi desenvolvida a partir dele.”⁶⁷. Outra congruência reveladora é o fato de que, na metade do século XV, o primeiro documento a ter sido impresso na prensa móvel de Gutenberg de que se tem conhecimento foi um calendário (não uma Bíblia). E é digno de nota que o fim da revolta milenarista, tal como a dos Taboritas da Boêmia no século XV e a dos Anabatistas de Münster no início do século XVI, coincidiu com o aperfeiçoamento e a difusão do relógio mecânico. Em The Triumph of Time [O triunfo do tempo] (1574), gravura de Philip Galle a partir do original de Pieter Bruegel, o Velho, os vários objetos e ideias da imagem são dominados pela figura de um relógio moderno.

Esse triunfo, tal como mencionado acima, despertou um grande impulso espacial como forma de compensação: a circunavegação do globo e a descoberta, repentinamente, de vastas novas terras, por exemplo. Igualmente evidente, no entanto, é sua relação com “a desrealização progressiva do mundo”⁶⁸, nas palavras de Charles Newman, que iniciou-se nessa época. A extensão, sob a forma de dominação, obviamente intensificou a alienação em relação ao mundo: um complemento totalmente pertinente à aurora da história moderna.

O tempo oficial tornou-se uma barreira não só palpável, como onipresente, filtrando e distorcendo o que as pessoas diziam umas às outras. A partir dessa época, ele indubitavelmente impôs um novo distanciamento nas relações humanas e uma inibição das respostas emocionais. Uma marca característica da Renascença, a procura por manuscritos raros e antiguidades clássicas é uma forma de desejo de resistir a esse tempo todo-poderoso. Mas a batalha foi decidida, e o tempo abstrato tornou-se a atmosfera, o novo arcabouço da existência. Quando Ellul supôs que “a totalidade da estrutura do ser” estava agora permeada pela “abstração e pela rigidez mecânicas”, ele referia-se mais especificamente à dimensão temporal.

Tudo isso floresceu nos anos de 1600, a partir de Bacon, que foi o primeiro a proclamar a dominação da natureza pela modernidade, bem como da formulação de Descartes relativa aos maîtres et possesseurs de la nature [mestres e possuidores da natureza], que “antecipou o controle imperialista da natureza que caracteriza a ciência moderna.”⁶⁹, o que inclui Galileu e a Revolução Científica do século XVII como um todo. A vida e a natureza tornaram-se mera quantidade, a singularidade perdeu sua força, e a imagem newtoniana do mundo como um mecanismo de relojoaria não tardou a prevalecer. A equivalência – com o tempo uniforme como seu verdadeiro modelo – passou a predominar, em um desenvolvimento que tornou “equiparável aquilo que é dessemelhante ao reduzi-lo a quantidades abstratas.”⁷⁰.

O poeta Ciro di Pers compreendeu que o relógio tornou o tempo escasso e a vida curta. Para ele, o relógio

acelera o curso do século fugaz,
e para que se abra, de hora em hora bate à tumba.⁷¹

Posteriormente, ainda no século XVII, a obra Paradise Lost [Paraíso perdido], de Milton, tomou partido a favor do tempo triunfante, a ponto de difamar o estado atemporal e paradisíaco:

[…] com o trabalho devo conquistar
Meu pão; que mal há nisso? A ociosidade havia sido pior;⁷²

Bem antes do início do capitalismo industrial, portanto, o tempo já havia subjugado e sincronizado substancialmente a vida; pode-se dizer que a tecnologia em desenvolvimento foi gerada pelos avanços anteriores do tempo. “Foi o advento do tempo moderno que tornou possível a rapidez da tecnologia.”⁷³, concluiu Octavio Paz. O célebre texto de E. P. Thompson intitulado “Time, Work-Discipline and Industrial Capitalism” [Tempo, disciplina de trabalho e capitalismo industrial]⁷⁴ descreveu a industrialização do tempo, mas, mais fundamentalmente, foi o tempo que consumou a industrialização, a despeito das grandes lutas da vida cotidiana no final do século XVIII e início do século XIX contra o sistema fabril.⁷⁵

Em termos da era moderna, novamente pode-se distinguir nas revoltas sociais o aspecto concreto, embora incipiente, de recusa do tempo. Nos últimos anos do século XVIII, por exemplo, o contexto de duas revoluções, ao que parece, ajudou Kant a perceber que o espaço e o tempo não fazem parte do mundo empírico, mas são elementos constituintes de nossas faculdades intersubjetivas adquiridas. Foi uma guinada não-revolucionária que um novo calendário, de curta vigência, tenha sido introduzido pela Revolução Francesa – não a resistência ao tempo, mas sua renovação sob nova direção!⁷⁶ Walter Benjamin escreveu sobre a verdadeira rejeição do tempo em referência à Revolução de Julho de 1830, chamando a atenção para o fato de que, no primeiro dia de luta, “em vários locais de Paris, independentemente uns dos outros e ao mesmo tempo, tiros foram disparados contra os relógios das torres.”. Ele citou os seguintes versos de uma testemunha ocular:

Quem poderia acreditar?! Dizem que, irritados contra as horas,
Novos Josués, ao pé de cada torre,
Atiraram nos mostradores dos relógios para parar o dia.⁷⁷

Não que os momentos de insurgência sejam as únicas ocasiões de sensibilidade à tirania do tempo. De acordo com Poulet, ninguém sentiu com maior pesar a metamorfose do tempo em algo absolutamente infernal do que Baudelaire, que escreveu acerca dos insatisfeitos “que recusaram a redenção pelo trabalho”, que queriam “possuir imediatamente, nesta Terra, um Paraíso.”; estes ele chamou de “Escravos martirizados pelo Tempo.”⁷⁸, uma noção ecoada pela denúncia de Rimbaud em relação ao escândalo de uma existência no tempo. Esses dois poetas sofreram em meio à longa e sombria noite da ascensão do capital entre a metade e o final do século XIX, embora se possa argumentar que a consciência do tempo que eles possuíam atingiu a máxima clareza através da participação ativa de ambos, respectivamente, na Revolução de 1848 e na Comuna de 1871.

A sátira utópica Erewhon, de Samuel Butler, retratou trabalhadores que destruíam suas máquinas antes que suas máquinas os destruíssem. Seu tema de abertura decorre de um incidente envolvendo o uso de um relógio e, mais adiante, o relógio de um visitante é, de certa forma, apreendido à força e levado para um museu de males do passado. Nesse mesmo espírito, e dessa mesma época, temos a seguinte passagem de Robert Louis Stevenson:

Você pode vagar o quanto quiser pela beira da estrada. É quase como se o Milênio tivesse chegado, quando lançaremos nossos relógios por sobre o telhado, e não mais nos lembraremos do tempo e das estações. Não seguir horários a vida inteira é, eu diria, viver para sempre. Você não faz ideia, a menos que tenha tentado, o quão infinitamente longo é um dia de verão que se mede unicamente pela fome, e que somente acaba quando o sono chega.⁷⁹

Referindo-se a fenômenos tais como enormes conglomerações políticas, o ensaio “The Work of Art in the Age of Mechanical Reproduction” [A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica], de Benjamin, deixou claro que “A reprodução em massa é promovida em especial pela reprodução das massas […].”⁸⁰. Mas poder-se-ia ir muito além e dizer simplesmente que a reprodução em massa é a reprodução das massas, ou do humano massificado. A própria produção em massa, com suas peças padronizadas e intercambiáveis e o trabalho assalariado correspondente constitui um fascismo da vida cotidiana que antecede em muito os comícios fascistas que Benjamin tinha em mente. E, tal como acima descrito, foi o tempo, várias centenas de anos antes disso, que propiciou o paradigma categórico à produção em massa, sob a forma de quantidades uniformes, porém distintas, ordenando a vida.

Stuart Ewen considerou que durante o século XIX e início do século XX, “a definição industrial do tempo e do espaço sociais estava no cerne dos distúrbios sociais.”⁸¹, de modo que, certamente, isso condiz com a verdade; contudo, a extensão da “questão” do tempo e do espaço requer uma perspectiva histórica suficientemente ampla que permita uma compreensão da era de massa emergente própria à modernidade.

Que os anos que precederam imediatamente a Primeira Guerra Mundial representaram uma contestação radical crescente, o que exigiu a carnificina horrenda da guerra para que se pudesse desviá-la e destruí-la, é uma tese que discuti em outro texto⁸². A profundidade dessa contestação pode ser mais bem perscrutada em termos da rejeição do tempo. A tensão contemporânea entre os âmbitos do ser e do tempo foi elucidada pela primeira vez por Bergson no período pré-guerra em seu protesto contra o caráter fragmentário e repressivo do tempo mecanicista⁸³. Com sua desconfiança em relação à ciência, Bergson argumentou que um senso qualitativo de tempo, de experiência vivida ou durée [duração], requer uma resistência ao tempo formalizado e espacializado. Embora limitada, sua perspectiva anunciou a renovação de uma crescente oposição a uma tirania que passou a caracterizar uma miríade de formas de subjugação.

A maior parte do impulso antitempo do século XX foi, de certa forma, plenamente articulada no movimento de reavivamento imediatamente anterior ao início da guerra. A reconsideração das aparências, empreendida em caráter de urgência pelo Cubismo, sem dúvida se insere nesse contexto; ao destruírem a perspectiva visual, que havia predominado desde o início da Renascença, os cubistas tentaram apreender a realidade tal como ela é, e não como ela aparentava ser em um determinado instante no tempo. Foi isso que permitiu a John Berger concluir que “a fórmula cubista pressupunha […], pela primeira vez na história, o humano vivendo de um modo não-alienado em relação à natureza.”⁸⁴. Einstein e Minkowski também se inseriram no contexto de revolta contra o tempo com o notório desmantelamento do universo newtoniano baseado no tempo e no espaço absolutos. Na música, Arnold Schönberg libertou a dissonância das falsas restrições impostas pela positividade que então predominavam, e Stravinsky atacou explicitamente as limitações temporais de várias novas formas, tal como Proust, Joyce⁸⁵ e outros fizeram na literatura. Todos os modos de expressão, de acordo com Donald Lowe, “rejeitaram a perspectiva linear de visualidade e a razão arquimédica, naquela década crucial de 1905 a 1915!”⁸⁶.

Na década de 1920, Heidegger deu ênfase ao tempo como o conceito central para a metafísica contemporânea e como o que constitui a estrutura essencial da subjetividade. Mas o impacto devastador da guerra alterou profundamente o senso de possibilidades dentro da realidade social. Being and Time [Ser e tempo] (1927), na verdade, longe de questionar o tempo, rendeu-se completamente a ele como a única perspectiva que possibilita a compreensão do ser. No paralelo traçado por Adorno, correlacionam-se “o ardil do comando militar, que disfarça o imperativo à guisa de uma sentença predicativa […]; também Heidegger age de modo autoritário quando coloca o verbo auxiliar em itálico na sentença ‘A morte é.’.”⁸⁷.

De fato, durante quase 40 anos após a Primeira Guerra Mundial, o espírito antitempo foi essencialmente suprimido. Na década de 1930, ainda era possível encontrar sinais desse espírito, digamos, no Movimento Surrealista ou nos romances de Aldous Huxley⁸⁸, mas o ímpeto renovado da tecnologia e da dominação prevaleceu, tal como se reflete no romance Time, Forward! [Tempo, avante!], de Katayev, ambientado no contexto dos Planos Quinquenais implantados por Stalin, ou na aberração monstruosa expressa pelo símbolo literalmente milenarista do Reich de Mil Anos.

Mais próximo de nossa situação contemporânea, uma consciência de tempo obstinada começou a reemergir à medida que um novo ciclo de contestação se aproximava. Na metade da década de 1950, o cientista N. J. Berrill interrompeu o projeto de um livro bastante desapaixonado para tecer comentários a respeito do desejo predominante na sociedade “de se chegar a lugar nenhum, vindo de lugar nenhum, na superfície do nada.”, observando que “Um minuto pode ainda abarcar a eternidade e um mês ser vazio de sentido.”. Ainda mais sobressaltado, ele exclamou que “Durante muito tempo me senti confinado no tempo, como um prisioneiro em busca de uma sensação de libertação.”⁸⁹. Pode parecer um lugar um tanto quanto improvável de onde se ouvir uma declaração como essa, mas outro homem de ciência afirmou algo semelhante 40 anos antes, ao mesmo tempo em que a Primeira Guerra Mundial estava prestes a debelar a insurgência por décadas; Wittgenstein observou que “Somente uma pessoa que vive não no tempo, mas sim no presente é feliz.”⁹⁰.

As crianças, é claro, vivem no agora e desejam a satisfação agora, caso estejamos à procura de sujeitos para a ideia de que somente o presente pode ser pleno. A alienação no tempo, o início do tempo como uma “coisa” alheia, começa na primeira infância, já na maternidade, ainda que Joost Meerloo esteja correto ao afirmar que “A cada trauma na vida, a cada nova separação, aumenta a consciência do tempo.”⁹¹. Raoul Vaneigem forneceu o elemento consciente, delineando perfeitamente a função da escolarização: “Os dias da criança fogem ao tempo dos adultos; o tempo das crianças é repleto de subjetividade, de paixão e de sonhos prenhes de realidade. Do lado de fora, os educadores observam, aguardando, com o relógio na mão, até que a criança junte-se e conforme-se ao ciclo das horas.”⁹². Os níveis de condicionamento refletem, é claro, as dimensões de um mundo tão esvaziado, tão extraordinariamente alienado que o tempo nos arrancou completamente do presente. “Cada segundo que passa arrasta-me do momento que foi ao momento que será. Cada segundo abstrai-me de mim mesmo; o agora nunca existe.”⁹³

A natureza repetitiva e rotineira da vida industrial é o produto óbvio do tempo e da tecnologia.⁹⁴ Um aspecto importante da vida caçadora-coletora atemporal era o caráter único e esporádico, em vez de repetitivo, de suas atividades⁹⁵; os números e o tempo aplicam-se ao quantitativo, não ao qualitativo. Em relação a isso, Richard Schlegel considerou que se os acontecimentos fossem sempre inéditos, não só a ordem e a rotina seriam impossíveis, mas também a própria noção de tempo⁹⁶.

Na peça Waiting for Godot [À espera de Godot], de Beckett, os dois protagonistas recebem uma visita, depois da qual um deles suspira: “Bem, ao menos foi algo que ajudou a passar o tempo.”. O outro responde: “Bobagem, o tempo teria passado de qualquer maneira.”⁹⁷. Nessa interação prosaica, o horror fundamental da vida moderna é perscrutado. A metapresença do tempo desta vez é sentida como uma força profundamente opressiva, impondo-se sobre seus sujeitos de um modo totalmente autônomo. Deveras pertinente é essa síntese elaborada por George Morgan: “Uma preocupação aflita em ‘matar o tempo’ e um movimento inquieto de novidade em novidade soterra uma constante sensação de futilidade e de vacuidade. Em meio a suas infinitas realizações, o homem moderno está perdendo a substância da vida humana.”⁹⁸.

Loren Eiseley certa vez descreveu “um sentimento de terror inexplicável”, como se ele e seu companheiro, que estavam examinando um crânio, estivessem no caminho de “uma torrente que arrastava tudo para a destruição.”. Compreendendo perfeitamente a sensação de Eiseley, seu amigo parafraseou-o como tendo dito, em outras palavras: “conhecer o tempo significa temê-lo, e conhecer o tempo civilizado significa estar coberto de terror.”⁹⁹. Dada a história do tempo e nossa atual crise em meio a ele, seria difícil imaginar uma interação mais presciente do que essa.

Na década de 1960, Robert Lowell ofereceu uma expressão sucinta ao extremo grau de alienação do tempo:

Estou aprendendo a viver na história.
O que é a história? Aquilo que não se pode tocar.¹⁰⁰

Felizmente, também nos anos 60, muitas outras pessoas estavam iniciando o processo de desaprender a viver na história, tal como evidenciado pelo abandono dos relógios de pulso, pelo uso de drogas psicodélicas e, talvez paradoxalmente, pelo popular slogan de uma só palavra dos insurrecionários franceses do Maio de 1968 – “Rápido!”. O elemento de recusa do tempo na revolta dos anos 60 foi forte e há sinais – tais como a revolta contra o trabalho – de que essa recusa continua a se aprofundar até mesmo enquanto luta contra novas e extremas espacializações do tempo.

Desde quando Marcuse escreveu acerca da “aliança entre o tempo e a ordem repressiva”¹⁰¹, e Norman O. Brown sobre o senso de tempo ou de história como uma função da repressão¹⁰², a vivacidade dessa conexão aumentou poderosamente.

Christopher Lasch, no final dos anos 70, notou que “Uma mudança profunda em nossa noção de tempo transformou hábitos de trabalho, valores e a definição de sucesso.”¹⁰³. E se o trabalho está sendo recusado como um componente-chave do tempo, também está se tornando óbvio como o consumo devora o tempo vivo. O símbolo espacial perfeito do tempo nos dias de hoje é o personagem de videogame Pac-Man, que literalmente devora o espaço para matar tempo.¹⁰⁴

Tal como sucedeu com o personagem Sr. Propter, de Aldous Huxley, milhões de pessoas passaram a considerar o tempo “uma coisa intrinsecamente aterradora”¹⁰⁵. Uma fixação com a idade e o movimento pró-longevidade, tais como discutidos por Lasch e outros, são dois sinais de seu tormento. Adorno disse certa vez: “À medida que os sujeitos vivem menos, a morte torna-se mais abrupta, mais aterrorizante.”¹⁰⁶. Parece haver uma nova geração entre os jovens praticamente a cada três ou quatro anos, à medida que o tempo, tornando-se mais palpável, sofreu uma aceleração desde os anos 60. A ciência contribuiu para um reflexo da resistência ao tempo na cultura popular em pelo menos dois fenômenos: o recurso generalizado a conceitos antitempo derivados mais ou menos livremente da teoria física, tais como buracos negros, distorções no espaço-tempo, singularidades no espaço-tempo e afins; e o apelo reconfortante ao “tempo profundo” dos chamados romances geológicos, tais como a obra Basin and Range [Vale e serra] (1981), de John McPhee.

Quando Benjamin julgou que “O conceito de progresso histórico da humanidade não pode ser separado do conceito de sua progressão através de um tempo homogêneo.”¹⁰⁷, ele fez um chamado a uma crítica de ambos, não fazendo ideia do quanto esse chamado poderia um dia repercutir. Menos ainda, é claro, se poderia prever que o dito de Goethe de que “Nenhum homem pode julgar a história senão aquele que tenha ele mesmo vivenciado a história.”¹⁰⁸ se aplicaria em tão grande escala quanto se aplica agora, com o tempo como a mais real e onerosa das dimensões. O projeto de anulação do tempo e da história terá que ser desenvolvido como a única esperança de libertação humana.

Obviamente, não são poucos os sábios que continuam a afirmar que a própria consciência é impossível sem o tempo e sua espacialização¹⁰⁹, por algum motivo negligenciando um período extraordinariamente longo da existência da humanidade. Algumas palavras finais da obra News from Nowhere [Notícias de Lugar Nenhum], de William Morris, constituem uma esperança pertinente em resposta a tais sábios da dominação: “A despeito de todas as máximas infalíveis de nossos dias, ainda há uma época de sossego reservada ao mundo, em que o domínio terá se transformado em companheirismo.”¹¹⁰.

Notas

  1. Oswald Spengler. The Decline of the West, Vol. I. New York, 1926, p. 131.
  2. Elias Canetti. Crowds and Power. New York, 1962, p. 397.
  3. Guy Debord. Society of the Spectacle. Detroit, 1977, tese 125.
  4. Max Horkheimer e Theodor W. Adorno. Dialektik der Aufklärung. Amsterdam, 1947, p. 274.
  5. Cioran, para não se mencionar uma multidão de outros antropólogos, faz essa confusão; esse é um dos motivos pelos quais ele pôde declarar: “Não há retorno a um paraíso pré-linguístico, a uma supremacia sobre o tempo baseada em uma estupidez primordial.”. E. M. Cioran. The Fall into Time. Chicago, 1970, p. 29. Outro motivo é a falha em imaginar esse “retorno” necessariamente como uma transformação social nos moldes da “revolução” mais fundamental.
  6. Spengler, op. cit., p. 390.
  7. Herbert Marcuse. One-Dimensional Man. Boston, 1964, p. 326.
  8. Lucien Lévy-Bruhl. Primitive Mentality. New York, 1923, p. 93. A obra Primitive Man as Philosopher [O humano primitivo como filósofo] (New York, 1927), de Paul Radin é, é preciso notar, uma correção necessária à visão de Lévy-Bruhl do pensamento primitivo como sendo não-individualizado e dominado por padrões “místicos” e “ocultos”. Radin demonstrou que a individualidade, a autoexpressão e a tolerância caracterizam a humanidade primitiva.
  9. H. Frankfort e H. A. Frankfort. The Intellectual Adventure of Ancient Man. Chicago, 1946, p. 23.
  10. Marie-Louise von Franz. Time: Rhythm and Repose. London, 1978, p. 5.
  11. Jacquetta Hawkes. Man on Earth. London, 1954, p. 13.
  12. John G. Gunnell. Political Philosophy and Time. Middletown, Conn., 1968, p. 13; Mircea Eliade. Cosmos and History. New York, 1959, p. 86.
  13. Citado por Thomas J. Cottle e Stephen L. Klineberg. The Present of Things Future. New York, 1974, p. 166.
  14. Ibid., p. 168.
  15. O modo de caça e coleta ocupou mais de 99% do espectro da vida humana.
  16. Eric Alden Smith e Bruce Winterhalder. Hunter-Gatherer Foraging Strategies. Chicago, 1981, p. 4.
  17. Vide, por exemplo, Marshall Sahlins. Stone Age Economics. Chicago, 1972.
  18. Joost A. M. Meerloo. Along the Fourth Dimension: Man’s Sense of Time and History. London, 1972, p. 119.
  19. Mircea Eliade. Myth and Reality. New York, 1963, p. 51; E. R. Dodds. The Ancient Concept of Progress. Oxford, 1973, p. 3; W. K. C. Guthrie. In the Beginning. Ithaca, 1957, p. 69.
  20. Norman O. Brown. Love’s Body. New York, 1966, p. 148.
  21. Walter Benjamin. Illuminations. New York, 1978, p. 328.
  22. Mircea Eliade. Shamanism. Princeton, 1964, pp. 508, 486.
  23. Loren Eiseley. The Invisible Pyramid. New York, 1970, p. 113.
  24. Claude Lévi-Strauss. Structural Anthropology. New York, 1976, p. 28.
  25. Gunnell, op. cit., p. 17.
  26. Grahame Clark e Stuart Piggott. Prehistoric Societies. New York, 1965, p. 43.
  27. Erich Kahler. Man the Measure. New York, 1943, p. 39.
  28. Leslie Paul. Nature into History. London, 1957, p. 179.
  29. Kahler, op. cit., p. 40.
  30. Roderick Seidenberg. Posthistoric Man. Chapel Hill, 1950, p. 21.
  31. Arnold Gehlen. Man in the Age of Technology. New York, 1980, p. 13.
  32. Citado por Kahler, op. cit., p. 44.
  33. Citado por Adolf E. Jensen. Myth and Cult among Primitive Peoples. Chicago, 1963, p. 31.
  34. Émile Durkheim. Elementary Forms of Religious Life. New York, 1965, p. 22.
  35. Eliade, Myth and Reality, op. cit., pp. 95-96.
  36. Elman Service. The Hunters. Englewood Cliffs, N. J., 1966, pp. 90-91. Trabalhos recentes parecem corroborar essa imagem; por exemplo, John Nance. The Gentle Tasaday: A Stone Age People in the Philippine Rain Forest. New York, 1975.
  37. Talvez, sobretudo, Sigmund Freud. Civilization and its Discontents. London, 1949.
  38. E. M. Cioran. The New Gods. New York, 1974, p. 10.
  39. Horkheimer e Adorno, op. cit., p. 14.
  40. Morton Fried. “On the Evolution of Social Stratification and the State”. In: Stanley Diamond (Ed.). Culture in History. New York, 1960, p. 715.
  41. Gale E. Christianson. This Wild Abyss. New York, 1978, p. 20.
  42. Lawrence Wright. Clockwork Man. New York, 1968, p. 12.
  43. G. J. Whitrow. The Natural Philosophy of Time. Oxford, 1980, p. 56.
  44. Harry Elmer Barnes. The History of Western Civilization. New York, 1935, p. 25.
  45. Richard Glasser. Time in French Life and Thought. Manchester, 1972, p. 6.
  46. Martin P. Nilsson. Primitive Time-Reckoning. London, 1920, p. 1.
  47. William Irwin Thompson. The Time Falling Bodies Take to Light: Mythology, Sexuality and the Origins of Culture. New York, 1981, p. 211. Poder-se-ia dizer que a conhecida frase de Walter Benjamin “Nunca há um documento da civilização que não seja ao mesmo tempo um documento da barbárie.” aplica-se, em primeiro lugar e principalmente, ao calendário.
  48. Mircea Eliade. The Forge and the Crucible. New York, 1971, p. 177.
  49. Parece haver aqui um paralelo impressionante com a profunda valorização da memória por Marcuse (o que inclui até mesmo um endosso mútuo da visão cíclica do tempo). Vide Martin Jay. “Anamnestic Totalization: Reflections on Marcuse’s Theory of Remembrance”. In: Theory and Society, vol. 11, no. 1 (January 1982), pp. 1-15.
  50. J. B. Bury. The Idea of Progress. New York, 1932, pp. 8-9.
  51. Christianson, op. cit., p. 86.
  52. Nikolai Berdyaev. The Meaning of History. London, 1936, p. 1.
  53. Wright, op. cit., p. 39.
  54. Glasser, op. cit., p. 54.
  55. Lewis Mumford. Interpretations and Forecasts: 1922-1972. New York, 1972, p. 271.
  56. Lewis Mumford. Technics and Civilization. New York, 1934, p. 16.
  57. Glasser, op. cit., p. 56.
  58. Norman Cohn. The Pursuit of the Millennium. Fairlawn, N. J., 1957, p. 186.
  59. A celebração da Festa dos Loucos, que chegou a seu auge na Europa nessa época, era uma ridicularização da autoridade religiosa. Ela envolvia uma figura trajada grotescamente representando o alto clero, conduzida ao interior da igreja montada de costas em um asno com o hábito virado do avesso, e dançando ou invertendo a ordem da liturgia. Além disso, não é inconcebível que a Peste Negra, que dizimou a Europa entre 1348 e 1350, foi, em certo sentido, uma enorme e visceral reação ao ataque do tempo moderno.
  60. Jacob Bronowski. The Ascent of Man. Boston, 1974, p. 78.
  61. Yi-Fu Tuan. Space and Place. Minneapolis, 1977, p. 123.
  62. Fernand Braudel. Capitalism and Material Life, 1400-1800. London, 1967, p. 60.
  63. Ernst Kantorowicz. The King’s Two Bodies. Princeton, 1957, p. 274. Gustav Bilfinger, na década de 1890, também compreendeu a transição da era medieval para a era moderna como uma mudança na natureza do tempo.
  64. Jacques Le Goff. Time, Work, and Culture in the Middle Ages. Chicago, 1980, p. 51.
  65. S. Lilley. Men, Machines and History. London, 1948, p. 44.
  66. Mumford, Technics and Civilization, op. cit., p. 14.
  67. Carta de Marx a Engels, de 28 de janeiro de 1863. The Letters of Karl Marx. Englewood Cliffs, N. J., 1979, p. 168.
  68. Charles Newman, Introdução a The Fall into Time, de Cioran, op. cit., p. 10.
  69. Arnold Gehlen. Man in the Age of Technology. New York, 1980, p. 94.
  70. Horkheimer e Adorno, op. cit., p. 7.
  71. Sebastian de Grazia. Of Time, Work, and Leisure. New York, 1962, pp. 310-311.
  72. John Milton. Paradise Lost. Oxford, 1968, X, 1054-5.
  73. Octavio Paz. Alternating Current. New York, 1973, p. 146.
  74. E. P. Thompson. “Time, Work-Discipline and Industrial Capitalism”. In: Past and Present, vol. 38, no. 1 (December 1967), pp. 56-97.
  75. Por exemplo, John Zerzan. “Industrialism and Domestication”. In: Fifth Estate #271, vol. 11, no. 7 (April 1976).
  76. O tempo recomeçou para a nova República em 22 de setembro de 1792. O Ano Um do novo calendário revelou que o número de feriados sem trabalho havia sido cortado pela metade, uma ideia radicalmente impopular!
  77. Benjamin, op. cit., p. 264.
  78. Georges Poulet. Studies in Human Time. New York, 1956, p. 273.
  79. Robert Louis Stevenson. Virginibus Puerisque and Other Papers. New York, 1893, pp. 254-5.
  80. Benjamin, op. cit., p. 253.
  81. Stuart Ewen. Captains of Consciousness: Advertising and the Social Roots of the Consumer Culture. New York, 1976, p. 198.
  82. John Zerzan. “Origins and Meaning of World War I”. In: Telos, vol. 1981, no. 49 (September 1981), pp. 97-116.
  83. Raymond Klibansky. “The Philosophical Character of History”. In: Raymond Klibansky; H. J. Paton (Ed.). Philosophy and History: The Ernst Cassirer Festschrift. New York, 1963, p. 330.
  84. John Berger. Permanent Red. London, 1960, p. 112.
  85. “A história é um pesadelo do qual estou tentando acordar.”, James Joyce. Ulysses. New York, 1961, p. 34.
  86. Donald M. Lowe. History of Bourgeois Perception. Chicago, 1982, p. 117.
  87. Theodor W. Adorno. The Jargon of Authenticity. Evanston, Ill., 1973, p. 88.
  88. Por exemplo, After Many a Summer Dies the Swan (New York, 1939) e Time Must Have a Stop (New York, 1944), de Huxley.
  89. N. J. Berrill. Man’s Emerging Mind. New York, 1955, pp. 163-4.
  90. Ludwig Wittgenstein. Notebooks, 1914-1916. Chicago, 1979, p. 74e.
  91. Joost A. M. Meerloo. The Two Faces of Man. New York, 1954, p. 23.
  92. Raoul Vaneigem. The Revolution of Everyday Life. London, 1975, p. 220.
  93. Ibid., p. 228.
  94. Considere-se Jacques Ellul, The Technological System [O sistema tecnológico] (New York, 1980), a respeito de se é o tempo ou a tecnologia que “vem primeiro”. Todos os traços básicos de dominação da sociedade que ele atribui à tecnologia são, mais basicamente, características do tempo. Talvez um sinal indicativo de que ele ainda está a um passo de distância do nível mais fundamental é o caráter espacial de sua conclusão de que “a tecnologia é o único lugar em que forma e ser são idênticos.”, p. 231.
  95. Service, op. cit., p. 67.
  96. Richard Schlegel. Time and the Physical World. E. Lansing, 1961, p. 16.
  97. Samuel Beckett. Waiting for Godot. New York, 1954, p. 32.
  98. George W. Morgan. The Human Predicament: Dissolution and Wholeness. Providence, 1968, p. 41.
  99. Loren Eiseley, The Invisible Pyramid, op. cit., p. 102.
  100. Robert Lowell. Notebook 1967-1968. New York, 1969, p. 60.
  101. Herbert Marcuse. Eros and Civilization. New York, 1955, p. 213.
  102. Norman O. Brown. Life Against Death. Middletown, Conn., 1959, pp. 95, 103, por exemplo.
  103. Christopher Lasch. The Culture of Narcissism. New York, 1978, p. 53.
  104. Burt Alpert. Getting Gödel’s Goat: A Stoned Jogging Journal through Hofstadter. San Francisco, 1982, p. 1.
  105. Aldous Huxley, After Many a Summer Dies the Swan, op. cit., p. 117.
  106. Theodor W. Adorno. Negative Dialectics. New York, 1973, p. 370.
  107. Benjamin, op. cit., p. 263.
  108. Citado por Spengler, op. cit., p. 103.
  109. Por exemplo, Julian Jaynes. The Origin of Consciousness in the Breakdown of the Bicameral Mind. Boston, 1977, p. 280.
  110. William Morris. News from Nowhere. London, 1915, p. 278.

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* Referências de publicação deste ensaio no original em inglês:

ZERZAN, John. “Beginning of Time, End of Time”. In: Fifth Estate #313, vol. 18, no. 2 (Summer 1983), pp. 6-9.

ZERZAN, John. “Beginning of Time, End of Time”. In: ZERZAN, John. Elements of Refusal. Seattle: Left Bank Books, 1988, pp. 7-21, 241-244.

ZERZAN, John. “Beginning of Time, End of Time”. In: ZERZAN, John. Elements of Refusal. Columbia, MO: C.A.L. Press, 1999, pp. 15-29, 273-276.

ZERZAN, John. “Beginning of Time, End of Time”. In: ZERZAN, John. Origins: A John Zerzan Reader. Milwaukee, WI: FC Press/Greensburg, PA: Black and Green Press, 2010, pp. 48-65.

Essa coisa que fazemos

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por John Zerzan

Do Latim ‘re’, ou coisa, a reificação é essencialmente uma coisificação. Theodor Adorno, entre outros, afirmou que a sociedade e a consciência tornaram-se quase completamente reificadas. Através desse processo, as práticas e as relações humanas passam a ser vistas como objetos exteriores. Aquilo que é vivo acaba por ser tratado como uma coisa ou abstração não-viva, e essa reviravolta nos acontecimentos é vivenciada como algo natural, normal, inconteste.

Em Tristes Tropiques [Tristes Trópicos], Claude Lévi-Strauss nos oferece uma imagem desse processo de reificação, em termos da atrofia da civilização europeia: “[…] tal como um animal envelhecido, cujo couro cada vez mais espesso formou uma crosta imperecível em torno de seu corpo que, ao não mais permitir que a pele respire, está acelerando o processo de envelhecimento.”¹. A perda de sentido, de imediação e de vitalidade espiritual na civilização ocidental é um tema central nas obras de Max Weber, e também está ligada à reificação da vida moderna. Que esse fracasso da vida e do encantamento parece ser, de alguma forma, inevitável e imutável, em grande medida apenas dado como certo, é um fato tão importante quanto sua consequência reificada, e é inseparável dela.

Como chegamos ao ponto em que as atividades e as conexões humanas tornaram-se separadas de seus sujeitos e adquiriram uma “vida” própria coisificada? E considerando-se o evidente declínio da crença nas instituições e nas categorias de nossa sociedade, o que mantém as “coisas” unidas na sociedade coisificada?

Termos como reificação e alienação, em um mundo cada vez mais constituído das formas mais graves de alheamento, não são mais encontrados na literatura que supostamente lida com esse mundo. Aqueles que alegam não ter ideologia são muitas vezes os mais confinados e definidos pela ideologia dominante que eles não são capazes de perceber, e é possível que o mais alto grau de alienação seja atingido onde ela não mais adentra a consciência.

Reificação tornou-se um termo de uso corrente, tal como definido pelo marxista Georg Lukács: a saber, uma forma de alienação que surge a partir do fetichismo da mercadoria das relações de mercado modernas. As condições sociais e a situação do indivíduo tornaram-se misteriosas e impenetráveis como função daquilo a que agora normalmente nos referimos como sendo o capitalismo de consumo. A força reificadora do estágio do capital que iniciou-se no século XX nos esmaga e nos cega.

Penso, contudo, que pode ser útil redefinir a reificação de modo a se estabelecer um significado e uma dinâmica muito mais profundos. Aquilo que é pura e diretamente humano está de fato sendo esvaziado, assim como a própria natureza tem sido subjugada como um objeto. No gélido universo das mercadorias, o domínio das coisas sobre a vida é óbvio, e essa frieza que Adorno identificou como o princípio básico da subjetividade burguesa está se intensificando.

Mas se a reificação é o mecanismo central através do qual a forma da mercadoria permeia a totalidade da cultura, ela também é muito mais do que isso. Kant conhecia o termo, e foi Hegel, pouco depois, quem fez amplo uso dele (bem como do termo objetificação, seu equivalente aproximado). Ele descobriu uma radical ausência de ser no âmago do sujeito; e é aqui que poderemos investigar frutiferamente.

O mundo apresenta-se a nós – e nós o re-presentamos. Qual é a necessidade de fazermos isso? Sabemos o que os símbolos realmente simbolizam? Seria a verdade aquilo que precisa ser possuído, e não aquilo que é representado? Os signos são basicamente sinais, isto é, são correlativos; mas os símbolos são substitutivos.

Tal como Husserl coloca, “O símbolo existe efetivamente no momento em que ele introduziu algo além da própria vida […]”². É possível que a reificação seja um corolário ou um subproduto inevitável da simbolização mesma.

Para se dizer o mínimo, parece haver fundamentos reificados em todas as redes de dominação. Os calendários e os relógios formalizam o tempo e, ademais, o reificam, o que, provavelmente, foi a primeira de todas as reificações. A estrutura social dividida é um mundo reificado em grande parte porque ela é uma estrutura simbólica de funções e de imagens, e não de pessoas. O poder se cristaliza sob a forma de redes de dominação e de hierarquia à medida que a reificação entra em cena logo no início. No atual mundo producionista, a extrema divisão do trabalho realiza o seu sentido original. Tornados cada vez mais passivos e insignificantes, reificamo-nos sem cessar. Nosso empobrecimento crescente beira a condição em que somos meras coisas.

A reificação permeia a cultura pós-moderna, na qual apenas as aparências mudam e parecem estar vivas. O caráter nefasto de nossa pós-modernidade pode ser considerado como o destino da história da filosofia, e como o destino de bem mais do que tão-somente a filosofia. A história enquanto história começa como perda de integridade, como imersão em uma trajetória exterior que faz o eu em pedaços. A negação da escolha humana e do agir efetivo é tão antiga quanto a divisão do trabalho; apenas seu desenvolvimento drástico ou sua plena realização são novos.

Há cerca de 250 anos, o romântico alemão Novalis lamentava que “perdeu-se o sentido da vida.”³. O questionamento generalizado do sentido da vida somente começou por volta desse período, exatamente na mesma época em que o industrialismo fazia as suas primeiras incursões.⁴ Desse momento em diante, a erosão do sentido foi rapidamente acelerada, o que nos lembra que a função substitutiva da simbolização é também protética. A substituição daquilo que é vivo pelo que é artificial, tal como a tecnologia, implica uma coisificação. A reificação sempre é, ao menos em parte, um imperativo tecnológico.

A tecnologia é “a habilidade de ordenar o mundo de tal forma que não precisemos vivenciá-lo.”⁵. Espera-se que neguemos aquilo que é vivo e natural dentro de nós, a fim de que aquiesçamos na dominação da natureza não-humana. A tecnologia tornou-se, inequivocamente, o grande veículo da reificação. Sem nos esquecermos que ela encarna e está incorporada em um âmbito global do capital que se expande cada vez mais, a reificação nos subordina a nossas próprias criações objetificadas. (“As coisas assumiram as rédeas e comandam a humanidade.”, observou Emerson na metade do século XIX.) Essa reviravolta nos acontecimentos nem mesmo é algo recente; em vez disso, ela reflete o código fundamental da cultura, ab origino [desde a origem]. A separação em relação à natureza e sua pacificação e manipulação subsequentes fazem com que nos perguntemos: o indivíduo está desaparecendo? Foi a própria cultura que colocou esse processo em movimento? Como chegamos ao ponto em que uma formulação tão reificada como “as crianças são nosso recurso mais precioso” não parece repugnante aos olhos de todos?

Somos prisioneiros de tantas coisas que são não apenas funcionais, enquanto matéria-prima para o funcionamento de outras coisas manipuláveis, mas que também são sempre artificiais. Somos exilados em relação ao que é imediato, em uma paisagem desvanecida e arrasada onde o pensamento luta para desaprender seu condicionamento alienado. Merleau-Ponty falhou em sua busca, mas ao menos tentou chegar a uma ontologia primordial da visão, anterior à ruptura entre sujeito e objeto. É a divisão do trabalho e as formas conceituais de pensamento resultantes que permanecem inquestionadas, impedindo a descoberta da reificação e do pensamento reificado.

Em última instância, é nosso modo de conhecer em sua totalidade que tem sido deformado e reduzido dessa maneira, e que precisa ser compreendido enquanto tal. A “inteligência” é agora uma exterioridade a ser mensurada, equiparada a proficiência em manipular símbolos. A filosofia tornou-se a racionalização altamente elaborada das reificações. E, de um modo ainda mais geral, o próprio ser é constituído enquanto experiência e representação, enquanto sujeito e objeto. Esses desdobramentos devem ser criticados o mais fundamentalmente possível.

O elemento ativo e vivo na cognição precisa ser desvelado sob as reificações que o mascaram. A cognição, a despeito da ortodoxia contemporânea, não é uma série de cômputos. O filósofo Ryle intuiu que uma forma de conhecimento que não dependa da representação simbólica deve ser a forma básica de conhecimento.⁶ Nossas noções da realidade são os produtos de um sistema de símbolos artificialmente construído, cujos componentes, com o passar do tempo, se cristalizaram sob a forma de reificações ou objetificações, à medida que a divisão do trabalho se consolidou como dominação da natureza e domesticação do indivíduo.

As formas de pensamento capazes de produzir cultura e civilização são não-sensíveis e geram distanciamento. Elas abstraem-se do sujeito e tornam-se um objeto independente. É um fato revelador que as sensações sejam muito mais resistentes à reificação do que as imagens mentais. O discurso platônico é um grande exemplo de uma forma de pensamento que avança às custas dos sentidos, em sua ruptura radical entre percepções e ideias. Adorno chama a atenção para uma alternativa mais benéfica com sua observação de que nos escritos de Walter Benjamin “o pensamento tem um contato próximo com o objeto, como se através do tato, do olfato e do paladar ele quisesse transformar-se.”⁷. E Le Roy provavelmente chega muito perto do cerne da questão quando diz: “nos resignamos ao conceito unicamente por falta de percepção.”⁸. Historicamente determinada no mais profundo dos sentidos, a característica de reificação do pensamento é mais uma das quedas em relação ao “estado de graça” cognitivo.

Husserl e outros compreenderam a representação simbólica como destinada originalmente a ser apenas um complemento temporário à expressão autêntica. A reificação entra em cena, de certa forma, de um modo paralelo, à medida que a representação passa do status de um substantivo utilizado para fins específicos ao status de um objeto. Se essas teses descritivas são adequadas ou não, parece ao menos evidente que há um hiato inelutável entre a abstração do conceito e a riqueza da teia dos fenômenos. Pertinente aqui é a conclusão de Heidegger de que o pensamento autêntico é “não-conceptual”, uma espécie de “escuta reverencial”⁹.

Sempre da maior relevância é a violência que nosso ethos [modo de ser] tecnológico obsessivamente invasivo perpetra contra a experiência vivida. Gilbert Germain compreendeu como esse ethos promove, à força, um “esquecimento da conexão entre o pensamento reflexivo e a experiência perceptiva direta do mundo, do qual esse pensamento surge e ao qual ele deveria retornar.”¹⁰. Engels notou de passagem que “a razão humana desenvolveu-se de acordo com a transformação da natureza pelo humano.”¹¹, o que é uma maneira eufemística de referir-se à íntima conexão entre a razão objetificadora e instrumentalizadora e a reificação progressiva.

Em todo caso, o pensamento típico da civilização tem se esforçado por reduzir a abundância que ainda persiste em nos cercar. A cultura é uma tela através da qual nossas percepções, nossas ideias e nossos sentimentos são filtrados e domesticados. De acordo com Jean-Luc Nancy, a principal coisa que o pensamento representativo representa é sua própria limitação.¹² Heidegger e Wittgenstein, possivelmente os pensadores mais originais do século XX, acabaram rejeitando a filosofia nesses termos.

O mundo-da-vida reificado exclui progressivamente aquilo que o questiona. A literatura a respeito da sociedade levanta cada vez menos questões básicas acerca da sociedade, e o sofrimento do indivíduo agora raramente é relacionado até mesmo a esta sociedade incontestada. A desolação emocional é vista quase totalmente como uma questão de anomalias cerebrais ou químicas “naturais” que ocorrem espontaneamente, nada tendo a ver com o contexto destrutivo que o indivíduo é, em geral, levado a suportar cegamente sob o efeito de drogas.

Em um nível mais abstrato, a reificação pode ser neutralizada ao se equipará-la à objetificação, que é definida de um modo que a coloca além de qualquer questionamento. A objetificação, nesse sentido, é tomada na acepção de uma consciência da existência de sujeitos e objetos, bem como do duplo caráter do eu enquanto sujeito e enquanto objeto. Hegel, nessa mesma veia, referiu-se à objetificação como a essência mesma do sujeito, sem a qual não é possível que haja desenvolvimento. Adorno considerava que uma certa dose de reificação seria um elemento indispensável no processo necessário de objetificação humana. À medida que se tornou mais pessimista em relação à realização de uma sociedade desreificada, ele passou a utilizar os termos reificação e objetificação como sinônimos¹³, consumando um abandono desmoralizado do projeto de questionar totalmente ambos conceitos.

Penso que possa ser elucidativo reconhecer os dois termos como sinônimos, não para acabar aceitando a ambos, mas para considerar a ideia de se investigar a alienação em sua forma mais básica. Toda objetificação requer uma alienação do sujeito em relação ao objeto, o que seria fundamental, ao que parece, para se atingir o objetivo de reconciliá-los. Como foi que chegamos a este presente horrendo, que pode ser definido como uma condição em que o sujeito reificado e o objeto reificado implicam-se mutuamente? Como é que, tal como William Desmond coloca, “a intimidade do ser é dissolvida na antítese moderna entre sujeito e objeto”¹⁴?

Tal como o mundo é moldado através da objetificação, assim também o é o sujeito: o mundo como um campo de objetos passíveis de manipulação. A objetificação, na condição de base para a dominação da natureza enquanto outro exterior e alheio, manifesta-se. Ainda mais revelador é o uso que Marx e Lukács fazem do termo como o meio natural através do qual os humanos dominam o mundo.

A mudança de foco dos objetos para a objetificação, da realidade para as construções de realidade, é também uma mudança com vistas à dominação e à mistificação. A objetificação é o momento decisivo para a cultura, na medida em que torna a domesticação possível. Ela atinge seu pleno potencial com o estabelecimento da divisão do trabalho; o próprio princípio de troca desenvolve-se a nível de objetificação. Analogamente, nenhuma das instituições da sociedade dividida consegue ser poderosa ou determinante sem um elemento reificado.

O filósofo Croce considerava pura retórica falar de um belo rio ou de uma bela flor; para ele, a natureza era estúpida em comparação com a arte. Essa elevação do cultural somente é possível por meio da objetificação. Em contrapartida, as obras de Kafka retratam as consequências da lógica cultural objetificadora, com sua descrição impressionante de uma paisagem reificada que esmaga o sujeito.

A representação e a produção são os fundamentos da reificação, que consolida e expande o império das primeiras. A tendência da reificação que, em última instância, leva ao distanciamento e à domesticação, impõe a separação crescente entre os sujeitos reduzidos e enrijecidos e um âmbito de experiência igualmente objetificado. Tal como diz a máxima situacionista, hoje o olho vê apenas as coisas e seus preços. A gênese dessa perspectiva é muitíssimo mais antiga do que a formulação dos situacionistas dá a entender; o projeto de desobjetificação pode fortalecer-se a partir da condição humana que existia antes do desenvolvimento da reificação. Um “futuro primitivo” torna-se urgente, no qual o domínio coisificado da civilização simbólica será substituído por um envolvimento vivo com o mundo e por uma participação fluída e íntima na natureza.

O primeiro de todos os sintomas da vida alienada é o surgimento gradual do tempo. A primeira reificação e, cada vez mais, a reificação quintessencial, o tempo é praticamente sinônimo de alienação. Somos agora governados e regulados de um modo tão generalizado por esse “isto” que, obviamente, é destituído de existência concreta, que ponderar a respeito de uma época pré-civilizada e atemporal é uma tarefa extremamente difícil.

O tempo é o sintoma de outros sintomas vindouros. A relação entre sujeito e objeto deve ter sido radicalmente diferente antes do momento em que a distância temporal começou a avançar para dentro da psique. O tempo passou a elevar-se acima de nós como uma coisa externa – um precursor do trabalho e da mercadoria, separado e dominador, tal como descrito por Marx. Essa força despresentificadora implica que a desreificação significaria um retorno ao presente eterno em que vivíamos antes de sermos sugados pela força de atração da história.

E. M. Cioran pergunta-se: “Como não se indignar com a absurdidade do tempo, com sua marcha em direção ao futuro e com todo o discurso sem sentido sobre evolução e progresso? Por que avançar? Por que viver no tempo?”¹⁵. O apelo de Walter Benjamin para que se destruísse a continuidade reificada da história estava baseado de um modo um tanto quanto análogo em seu anseio por uma plenitude ou unidade da experiência. A certa altura, o momento em si mesmo é o que de fato importaria, não dependendo de outros instantes “no tempo”.

Foi, sem dúvida, o relógio que completou essa reificação, ao dissociar o tempo dos eventos humanos e dos processos naturais. À época de seu surgimento, o tempo já era completamente exterior à vida e estava encarnado no primeiro dispositivo totalmente mecanizado. No século XV, Giovanni Tortelli escreveu que o relógio “parece estar vivo, visto que se move por conta própria.”¹⁶. O tempo passou a ser a medida de seus conteúdos, não mais os conteúdos sendo a medida do tempo. Muitas vezes dizemos que “não temos tempo”, mas é a reificação básica, o tempo, que nos tem.

A vida fragmentada é incapaz de tornar-se a norma sem a vitória fundamental do tempo. A complexidade, a singularidade e a diversidade de todas as criaturas vivas não se deixam extraviar pelo reino padronizador do quantitativo sem essa objetificação crucial.

A questão da origem da reificação é uma questão desafiadora que raras vezes foi perscrutada com suficiente profundidade. Um erro comum consiste em confundir-se inteligência com cultura; isto é, considera-se que a ausência de cultura seja equivalente à ausência de inteligência. Essa confusão é agravada ainda mais quando a reificação é vista como inerente à natureza do funcionamento mental. A partir de Thomas Wynn¹⁷ e de outros pesquisadores, sabemos agora que os humanos pré-históricos eram dotados de uma inteligência idêntica à nossa. Se a cultura é impossível sem a objetificação, daí não se segue que ambas sejam inevitáveis ou desejáveis.

Por mais cético que Adorno tenha sido em relação à ideia de origens, ele reconheceu que, originalmente, o comportamento humano não envolvia objetificação.¹⁸ De modo semelhante, Husserl chegou a referir-se à unidade primordial de toda a consciência antes de sua dissociação.¹⁹

Colocar essa condição existencial em foco provou ser algo, no mínimo, problemático. Lévi-Strauss iniciou sua atividade antropológica tendo essa busca em mente: “Eu estava à procura de uma sociedade reduzida a sua forma mais simples. A sociedade dos Nambikwara era tão verdadeiramente simples que tudo o que pude encontrar foram seres humanos.”²⁰. Em outras palavras, ele, de fato, ainda estava em busca da cultura simbólica, e parecia estar mal equipado para ponderar a respeito do significado de sua ausência. Herbert Marcuse pretendia que a história humana se conformasse à natureza como uma harmonia entre sujeito e objeto, mas ele sabia que “a história é a negação da natureza.”²¹. A perspectiva pós-moderna celebra positivamente a presença reificadora da história e da cultura ao negar a possibilidade de que um estado pré-objetificacional tenha existido. Tendo se rendido à representação – e a todas as outras realidades estéreis básicas do passado, do presente e do futuro –, dos pós-modernistas dificilmente se poderia esperar que investiguem a gênese da reificação.

Se não a reificação original, a linguagem é a que traz consigo as consequências de maior vulto, enquanto fundamento da cultura representacional. A linguagem é a reificação da comunicação, uma mudança paradigmática que estabelece todas as outras formas de separação mental. A versão do filósofo W. V. Quine para essa mesma tese é que a reificação surge com o pronome.²²

“No princípio era a Palavra […]”, o início de tudo isso, que está nos matando ao limitar a existência a uma imensidão de coisas. Enquanto corolário da simbolização, a reificação é uma esclerose que sufoca aquilo que é vivo, aberto e natural. O símbolo assume o lugar do ser. Se para nós é impossível coincidirmos com nosso ser, argumenta Sartre em Being and Nothingness [O Ser e o Nada], então o simbólico é a medida dessa não-coincidência. A reificação consuma esse fato, e a linguagem é sua moeda universal.

Uma mediação simbólica exaurida com cada vez menos a dizer prevalece em um mundo no qual essa mediação agora é vista como o fato central e até mesmo como o fato definidor da vida. Em uma existência sem vitalidade ou sem sentido, nada resta a não ser a linguagem. A relação da linguagem com a realidade dominou a filosofia do século XX. Wittgenstein, por exemplo, estava convencido de que a fundamentação da linguagem e do sentido linguístico constitui a base mesma da filosofia.

Essa “virada linguística” parece ser ainda mais profunda se considerarmos todo o caráter de categorização próprio à linguagem, o que inclui seu impacto original como um distanciamento radical. A linguagem é um elemento fundamental em nossa obrigação de objetificarmo-nos, em um contexto social que, cada vez mais, nos é alheio. Assim, é absurdo Heidegger declarar que a verdade a respeito da linguagem é que ela recusa-se a ser objetificada. O ato reificacional da linguagem empobrece a existência ao criar um universo de sentido suficiente em si mesmo. O “suficiente em si mesmo” supremo é o conceito de “Deus”, e sua descrição última é, de modo revelador, “Eu Sou o que Sou.” (Êxodo 3:14). Claramente, passamos a considerar a natureza separada e fechada em si mesma da objetificação como a qualidade mais elevada, em vez de a considerarmos como a degradação daquilo que é “meramente” contingente, relacional, conectado.

Já há algum tempo, se tem reconhecido que o pensamento não depende da linguagem e que a linguagem limita as possibilidades do pensamento.²³ Gottlob Frege perguntou-se se pensar de uma forma não-reificada é possível, e como seria possível explicar de que maneira o pensamento pode, em absoluto, ser reificado. A resposta não se encontrava no campo da lógica formal, por ele escolhido.

Na verdade, a linguagem avança como uma coisa exterior ao sujeito e molda nossos processos cognitivos. A teoria psicanalítica clássica ignorava a linguagem, mas Melanie Klein discutiu a simbolização como um fator que desencadeia a angústia. Para se traduzir a intuição de Klein em termos culturais, a angústia em relação à erosão de um mundo-da-vida não-objetificado ocasiona a linguagem. Experimentamos “o impulso de lançarmo-nos contra a linguagem”²⁴, quando sentimos que renunciamos à nossa voz e a única coisa que nos resta é a linguagem. A magnitude dessa perda é sugerida na definição de C. S. Peirce do eu como, sobretudo, uma consistência [ausência de contradição] da simbolização; “minha linguagem”, por sua vez, “constitui a totalidade do meu eu”, concluiu ele.²⁵ Dado esse tipo de redução, não é difícil concordarmos com Lacan que a iniciação ao mundo simbólico gera um anelo persistente que surge do afastamento do indivíduo em relação ao mundo real. “A expressão linguística é um mero substitutivo.”, escreveu Joyce em Finnegans Wake.

A linguagem refuta todo apelo à imediação ao desrespeitar aquilo que é singular e imobilizar aquilo que está em constante movimento. Seus elementos são entidades independentes em relação à consciência que os articula, os quais, por sua vez, sobrecarregam essa consciência. De acordo com Quine, essa reificação desempenha uma função na criação de um “sistema estruturado do mundo”, ao aparar as “arestas da experiência em seu estado bruto.”²⁶. Quine não reconhece os aspectos limitadores desse projeto. Em sua obra final, que ficou inacabada, o fenomenólogo Merleau-Ponty começou a investigar como a linguagem reduz uma riqueza original e como ela, na verdade, vai de encontro à percepção.

A linguagem, enquanto meio separado, de fato facilita a criação de um sistema estruturado, baseado em si mesmo, capaz de lidar com as “rebarbas” anárquicas da experiência. Ela realiza isso, basicamente a serviço da divisão do trabalho, ao rejeitar o aqui e agora da experiência. “Perceber é esquecer o nome daquilo que se percebe.”, uma declaração antirreificação de Paul Valéry²⁷, que nos dá uma indicação de como as palavras se interpõem no caminho da apreensão direta. Os Murngin do norte da Austrália consideravam o ato de dar nomes como uma espécie de morte, como a perda de uma plenitude original.²⁸ Um momento crucial da reificação ocorreu quando sucumbimos aos nomes e fomos convertidos em letras. Talvez seja quando mais precisamos nos expressar, plena e completamente, que a linguagem revela mais claramente sua natureza redutora e inarticulada.

A linguagem em si mesma corrompe, tal como Rousseau afirmou em seu famoso sonho de uma comunidade que pudesse estar livre dela. O caminho para além das pretensões da reificação implica quebrar o antigo feitiço da representação.

Outro canal básico da reificação é o ritual, que originou-se como um meio de inculcar um certo tipo de ordem conceitual e social. O ritual é um esquema de ação objetificado, e envolve um comportamento simbólico que é padronizado e repetitivo. Ele é a primeira fetichização da cultura, e aponta decisivamente rumo à domesticação. Em relação a esta última, o ritual pode ser considerado como o modelo original de calculabilidade da produção. Nessa mesma linha, Georges Condominas contestou a distinção que normalmente é feita entre ritual e agricultura. Seu trabalho de campo no sudeste da Ásia levou-o a compreender o ritual como um componente integral da tecnologia da agricultura tradicional.²⁹

Mircea Eliade descreveu os ritos religiosos como sendo reais somente na medida em que eles imitam ou repetem simbolicamente algum tipo de evento arquetípico, e acrescentou que a participação é sentida como sendo genuína somente na medida dessa identificação; isto é, somente na medida em que o(a) participante cessa de ser ele mesmo ou ela mesma.³⁰ Assim, o ato ritual repetitivo está intimamente relacionado à essência de despersonificação e desvalorização inerente à divisão do trabalho e, ao mesmo tempo, fica no limiar de uma potencial definição do processo de reificação mesmo. Abandonar-se em subordinação a um evento ou momento petrificado de um passado distante: tornar-se reificado, uma coisa que deve sua suposta autenticidade a uma reificação anterior.

A religião, tal como o resto da cultura, origina-se da falsa noção da necessidade de um combate contra as forças da natureza. Os poderes da natureza são reificados, juntamente com os poderes de seus equivalentes religiosos ou mitológicos. Do animismo ao deísmo, o divino desenvolve-se em oposição a um mundo natural retratado como cada vez mais ameaçador e caótico. J. G. Frazier compreendia os fenômenos religiosos e mágicos como “a conversão consciente daquilo que até então havia sido considerado como um ser vivo em uma substância impessoal.”³¹. Deificar é reificar, e uma descoberta de novembro de 1997 do arqueólogo Juan Vadeum nos ajuda a situar o contexto de domesticação desse movimento. Em Chiapas, no México, Vadeum descobriu quatro esculturas maias de pedra que representam os “avôs” originais da sabedoria e do poder.

Significativamente, essas figuras de seminal importância para a religião e a cosmologia maias simbolizam a Guerra, a Agricultura, o Comércio e os Tributos.³² Tal como Feuerbach observou, todo estágio importante na história da civilização humana começa com a religião³³, e a religião serve à civilização tanto substancial quanto formalmente. Em seu aspecto formal, a natureza reificadora da religião é a mais poderosa de todas as contribuições.

A arte é mais uma das objetificações originais da cultura, que é o que a torna uma atividade separada e o que a dota de realidade. A arte também é uma promessa de felicidade supostamente utópica, que nunca é cumprida. O engodo encontra-se em grande medida na reificação. “Ser uma obra de arte significa instaurar um mundo.”, de acordo com Heidegger³⁴, mas esse contramundo é impotente em face do resto do mundo objetificado do qual ele continua fazendo parte.

Georg Simmel descreveu o triunfo da forma sobre a vida, e o perigo que a subordinação à forma representa para a individualidade. O dualismo entre forma e conteúdo é o arquétipo da reificação mesma, e faz parte das divisões básicas da sociedade de classe.

Em um nível fundamental, há uma semelhança abstrata e um tanto limitada em toda aparência estética. Isso se deve a uma severa restrição da dimensão sensual, inimiga número um da reificação. E, aludindo a Freud, é a repressão de Eros que torna a cultura possível. Seria acidental que os três sentidos que estão excluídos da arte – tato, olfato e paladar – são os sentidos do amor sensual?

Max Weber reconheceu que a cultura “aparece como a emancipação do humano em relação ao ciclo organicamente estabelecido da vida natural. Por esse mesmo motivo”, segue ele, “todo passo adiante da cultura parece estar condenado a levar a uma ausência de sentido cada vez mais devastadora.”³⁵. À representação da cultura segue-se o prazer na representação, que substitui o prazer em si mesmo. A vontade de criar cultura faz vista grossa à violência na cultura e à violência da própria cultura, uma violência que é inescapável, dado que a cultura tem como alicerces a fragmentação e a separação. Toda reificação se esquece disso.

Para Homero, a ideia de barbarismo era a de uma entidade desprovida de agricultura. A cultura e a agricultura sempre estiveram ligadas por sua base comum na domesticação; perder aquilo que é natural dentro de nós é perder a natureza fora de nós. A pessoa torna-se uma coisa a fim de dominar as coisas.

Nos dias de hoje, a cultura do capitalismo global abandona sua pretensão de ser cultura, até mesmo quando a produção de cultura ultrapassa a produção de mercadorias. A reificação, o processo da cultura, domina no momento em que tudo somente espera para ser naturalizado, em um ambiente em constante transformação que é “natural” apenas em nome. Os próprios objetos – e até mesmo as relações “sociais” entre eles – são percebidos como reais somente na medida em que se reconhece sua existência no espaço midiático ou no ciberespaço.

Uma reificação domesticadora transforma tudo, inclusive nós mesmos, em seus objetos. E esses objetos possuem cada vez menos originalidade ou aura, tais como discutidas por comentadores desde Baudelaire e Morris até Benjamin e Baudrillard. “Uma enxurrada de coisas vazias e indiferentes transborda agora da América; coisas falsas, vida postiça.”, escreveu Rilke.³⁶ Enquanto isso, o mundo natural em sua totalidade tornou-se um mero objeto.

A prática pós-moderna arranca as coisas de seu contexto e de sua história, como, por exemplo, no estratagema de se inserir na música, na pintura e em novelas “citações” ou elementos arbitrariamente justapostos pertencentes a outros períodos. Isso confere aos objetos uma autonomia desarraigada e indefinida, ao passo que aos sujeitos resta pouca ou nenhuma autonomia.

Parecemos ser objetos destruídos pela objetificação, nosso enraizamento e nossa autenticidade tendo sido aniquilados. Somos como o esquizofrênico que vivencia a si mesmo ativamente como uma coisa.

Há uma frieza, até mesmo uma desvitalização cada vez mais impossível de ser negada. Uma sensação palpável de que “algo está faltando” é inerente ao empobrecimento inequívoco de um mundo que objetifica a si mesmo. Pode ser que nossa única esperança se encontre precisamente no fato de que a insanidade do todo é tão evidente.

Continua sendo alegado que a reificação é uma necessidade ontológica em um mundo complexo, que é exatamente o cerne do problema. O ato de desreificação precisa ser um retorno a uma vida simples e não-dividida. A vida engessada e dissimulada em uma coisidade petrificada será incapaz de redespertar sem um vasto desmantelamento deste mundo perdido cada vez mais padronizado e massificado.

Até bem recentemente – até a civilização –, a natureza ainda era um sujeito, e não um objeto. Nas sociedades de caçadores-coletores, não havia divisão estrita ou hierarquia entre o humano e o não-humano. A natureza participativa de uma conexão desaparecida precisa ser resgatada, aquela condição na qual o sentido era vivido, e não objetificado em uma rede de cultura simbólica. A imagem deveras positiva que agora temos da pré-história estabelece a perspectiva de um recordar antecipatório: deparamo-nos com um horizonte de reconciliação entre sujeito e objeto.

Essa participação original junto com a natureza é a antítese da dominação e do distanciamento que constituem o âmago da reificação. Ela nos lembra que todo desejo é um desejo de relação que, em sua forma mais sublime, é recíproca e cheia de vida. Possibilitar essa proximidade ou presença é um projeto prático gigantesco, que fará com que estes dias sombrios cheguem ao fim.

1998

Notas

  1. Claude Lévi-Strauss. Tristes Tropiques. New York, 1972, p. 382.
  2. Edmund Husserl. Le Discours et le Symbole. Paris, 1962, p. 66.
  3. Novalis. Schriften, vol. II. Stuttgart, 1965-1977, p. 594.
  4. Iddo Landau. “Why Has the Question of the Meaning of Life Arisen in the Last Two and a Half Centuries?”. Philosophy Today, Summer 1967.
  5. Citação atribuída ao dramaturgo Max Frisch. Fonte desconhecida.
  6. Gilbert Ryle. The Concept of Mind. London, 1949.
  7. Theodor Adorno. Prisms. Cambridge, 1981, p. 240.
  8. Édouard Le Roy. The New Philosophy of Henri Bergson. New York, 1913, p. 156.
  9. Martin Heidegger. “What is Thinking?” In: Basic Writings. New York, 1969.
  10. Gilbert B. Germain. A Discourse on Disenchantment. Albany, 1992, p. 126.
  11. Friedrich Engels. Dialectic of Nature. Moscow, 1934, p. 231.
  12. Jean-Luc Nancy. The Birth to Presence. Stanford, 1993, p. 2.
  13. Theodor Adorno. Prisms. Cambridge, 1983, p. 262, por exemplo.
  14. William Desmond. Perplexity and Ultimacy. Albany, 1995, p. 64.
  15. E. M. Cioran. On the Heights of Despair. Chicago, 1990, p. 126.
  16. Giovanni Tortelli. De Orthographia. 1471.
  17. Thomas Wynn. The Evolution of Spatial Competence. Urbana, 1989.
  18. Theodor Adorno. Aesthetic Theory. Minneapolis, 1997, pp. 118, 184.
  19. Edmund Husserl. The Crisis of European Sciences and Transcendental Phenomenology. Evanston, 1970.
  20. Lévi-Strauss. op. cit., p. 358.
  21. Herbert Marcuse. One Dimensional Man. Boston, 1964, p. 236.
  22. W. V. Quine. From Stimulus to Science. Cambridge, 1995, p. 27.
  23. Maxine Sheets-Johnstone. The Roots of Thinking. Philadelphia, 1990.
  24. Ludwig Wittgenstein. “Wittgenstein’s Lecture on Ethics”. Philosophical Review 74 (1965), p. 12.
  25. C. S. Peirce. Collected Papers. Cambridge, 1931-1958, vol. 5, pp. 28, 29.
  26. Quine, op. cit., p. 29.
  27. A citação é o título da obra autobiográfica de Robert Irwin (Berkeley, 1982).
  28. Bradd B. Shore. Culture in Mind. New York, 1996, p. 222.
  29. Georges Condominas. We Have Eaten the Forest. New York, 1977.
  30. Mircea Eliade, citado em False Consciousness, por Joseph Gabel (Oxford, 1975), p. 39.
  31. J. G. Frazier. The Golden Bough: A Study in Magic and Religion. New York, 1932-36, XLIX, p. 74.
  32. Mark Stevenson. “Mayan Stones Discovery May Confirm Ancient Text”. Associated Press (November 17, 1997).
  33. Ludwig Feuerbach. Lectures on the Essence of Religion. New York, 1967, p. 209.
  34. Martin Heidegger. “The Origin of the Work of Art”. In: Basic Writings. New York, 1969, p. 170.
  35. Max Weber. “Religious Rejections of the World and their Directions”. In: Essays on Sociology. Hans Gerth; C. Wright Mills (Ed.). New York, 1958, pp. 356-357.
  36. Rainer Maria Rilke. Letters of Rilke, vol. 2. New York, 1969, p. 374.

Correndo no vazio: o fracasso do pensamento simbólico

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por John Zerzan

“Se não ‘voltarmos a si’ logo, teremos sido privados para sempre da chance de construir uma alternativa significativa à pseudoexistência que chamamos de vida em nossa atual ‘Civilização da Imagem’.” ― David Howes

Em que medida pode-se dizer que estamos realmente vivendo? Ao passo que a substância da cultura parece desvanecer e oferecer cada vez menos consolo para nossas vidas conturbadas, somos levados a olhar mais profundamente para nossos tempos estéreis e para o lugar que a própria cultura ocupa em tudo isso.

Um angustiado Ted Sloan pergunta-se (1996): “Qual é o problema com a modernidade? Por que as sociedades modernas têm tanta dificuldade em criar adultos capazes de intimidade, atividade criativa, satisfação e uma vida ética? Por que os sinais da vida danificada são tão preponderantes?”. De acordo com David Morris (1994), “o sofrimento e a depressão crônicos, geralmente conectados e ocasionalmente considerados até mesmo como um só e o mesmo distúrbio, constituem uma imensa crise no cerne da vida pós-moderna.”. Temos o ciberespaço, a realidade virtual e a comunicação computadorizada instantânea na aldeia global; e, no entanto, alguma vez já nos sentimos tão empobrecidos e isolados quanto nos encontramos hoje?

Tal como Freud previu que a consumação da civilização implicaria a infelicidade neurótica universal, correntes anticivilização estão crescendo em resposta à indigência psíquica que nos cerca. Assim, a vida simbólica, essência da civilização, encontra-se agora sob fogo cerrado.

Pode-se ainda dizer que esse elemento dentre os mais familiares, ainda que artificial, é o menos compreendido, mas a urgência da necessidade move a crítica, e muitos de nós sentem-se impelidos a investigar a fundo esse modo de vida que torna-se cada vez pior. De uma sensação de se estar aprisionado e limitado pelos símbolos advém a tese de que o grau em que o pensamento e a emoção estão atrelados ao simbolismo é a medida pela qual a ausência ocupa o mundo interior e destrói o mundo exterior.

Ao que parece, passamos pela experiência de uma queda na representação, cuja profundidade e cujas consequências somente agora estão sendo perscrutadas inteiramente. Em um tipo fundamental de falsificação, os símbolos primeiramente mediaram a realidade e, em seguida, substituíram-na. Atualmente, vivemos dentro dos símbolos em um grau muito maior do que vivemos em nosso eu corporal ou diretamente uns com os outros.

Quanto mais entranhado em nós esse sistema representacional interno estiver, tanto mais distanciados da realidade à nossa volta ficaremos. Outras conexões e outras perspectivas cognitivas foram inibidas, para se dizer o mínimo, à medida que a comunicação simbólica e sua miríade de esquemas representacionais perpetraram uma alienação em relação à realidade e uma traição dessa mesma realidade.

Essa interposição e a distorção e o distanciamento concomitantes são ideológicos em um sentido primário e original; toda ideologia subsequente é um eco dessa primeira. Debord descreveu a sociedade contemporânea como uma sociedade que bane a vida em favor de sua representação: as imagens agora assumiram as rédeas e comandam a vida. Mas isso é tudo menos um problema novo. Há um imperialismo ou expansionismo da cultura desde o início. E o quanto exatamente a cultura conquista? A filosofia hoje diz que é a linguagem que pensa e fala. Mas em que medida sempre foi assim? A simbolização é linear, sucessiva, substitutiva; ela é incapaz de manter-se aberta ao objeto em sua totalidade simultaneamente. Sua razão instrumental é nada mais do que isto: manipuladora e em busca de domínio. Sua abordagem é “que ‘a’ represente ‘b’”, ao invés de “que ‘a’ seja ‘b’”. A linguagem tem suas bases no esforço por conceptualizar e igualar aquilo que não é igual, ignorando assim a essência e a diversidade de uma riqueza variada e variável.

O simbolismo é um império vasto e profundo que reflete uma visão de mundo e a torna coerente, e é ele mesmo uma visão de mundo baseada no afastamento em relação ao sentido humano imediato e inteligível.

James Shreeve, ao final de sua obra The Neandertal Enigma [O enigma do Neandertal] (1995), oferece uma bela ilustração de uma alternativa ao ser simbólico. Meditando a respeito de como uma consciência não-simbólica original poderia ter sido, ele suscita importantes distinções e possibilidades:

“[…] ao passo que se pode dizer que os deuses dos modernos habitam a terra, o búfalo ou as folhas da relva, o espírito do Neandertal era o animal ou a folha da relva, a coisa e sua alma percebidas como uma força vital una, sem a necessidade de distingui-las com nomes separados. De modo semelhante, a ausência de expressão artística não impede a apreensão daquilo que é artístico no mundo. Os Neandertais não pintavam suas cavernas com imagens de animais. Mas talvez eles não tivessem a necessidade de destilar a vida em representações, porque suas essências já haviam sido reveladas para os seus sentidos. A visão de uma manada em movimento era suficiente para inspirar um senso de beleza arrebatador. Eles não tinham tambores ou flautas de osso, mas eles podiam ouvir os ritmos retumbantes do vento, da terra e dos batimentos cardíacos uns dos outros, e ser transportados.”

Em vez de celebrar a comunhão cognitiva com o mundo que Shreeve sugere que outrora desfrutávamos, e muito menos de embarcar no projeto de tentar recuperá-la, o uso dos símbolos é, claro, amplamente considerado o sinal distintivo da cognição humana. Goethe disse “Tudo é símbolo.”, enquanto o capitalismo industrial, marco da mediação e da alienação, ascendia. Por volta da mesma época, Kant determinou que a chave para a filosofia encontra-se na resposta à questão: “Qual é o fundamento da relação daquilo em nós que chamamos de ‘representação’ com o objeto?”. Infelizmente, ele legou ao pensamento moderno uma resposta ahistórica e fundamentalmente inadequada, a saber, que nós simplesmente não somos constituídos de modo a sermos capazes de compreender a realidade diretamente. Dois séculos mais tarde (1981), Emmanuel Levinas chegou muito mais perto do cerne da questão com sua afirmação de que “A filosofia, em sua diacronia mesma, é a consciência da ruptura da consciência.”.

Eli Sagan (1985) foi o porta-voz de inúmeras outras pessoas ao declarar que a necessidade de simbolizar e de viver em um mundo simbólico é, tal como a agressão, uma necessidade humana tão básica que “ela somente pode ser negada sob pena de um severo transtorno psíquico.”. No entanto, a necessidade de símbolos – e de violência – nem sempre prevaleceu. Em vez disso, eles têm suas origens no bloqueio e na fragmentação de uma plenitude primitiva, no processo de domesticação do qual a civilização surgiu. Aparentemente impulsionada por um aumento em gradual aceleração na divisão do trabalho que começou a consolidar-se no Paleolítico Superior, a cultura emergiu como tempo, linguagem, arte, número e, finalmente, agricultura.

A palavra ‘cultura’ deriva do termo latino ‘cultura’, que refere-se ao cultivo do solo; isto é, à domesticação de plantas e de animais – e de nós mesmos no processo. Um espírito inquieto de inovação e de ansiedade tem, em grande medida, nos acompanhado desde então, ao passo que modos simbólicos em contínua mutação tentam consertar aquilo que não pode ser remediado sem que se rejeite o simbólico e seu mundo alienado.

Na esteira de Durkheim, Leslie White (1949) escreveu: “O comportamento humano é comportamento simbólico; o comportamento simbólico é comportamento humano. O símbolo é o universo da humanidade.”. É passada a hora de percebermos tais pronunciamentos como ideologia, que serve para apoiar a falsificação fundamental subjacente a uma falsa consciência que abarca praticamente tudo. Mas se um mundo simbólico plenamente desenvolvido não é, em suma, na afirmação vaga de Northrop Frye (1981), “o estatuto de nossa liberdade”, o antropólogo Clifford Geertz (1965) chega mais perto da verdade ao dizer que, em geral, somos dependentes “da orientação proporcionada pelos sistemas de símbolos significativos.”. Ainda mais perto chegou Cohen (1974), que observou que “os símbolos são essenciais para o desenvolvimento e a manutenção da ordem social.”. O conjunto dos símbolos representa a ordem social e o lugar que o indivíduo ocupa dentro dela, uma formulação que sempre deixa inquestionada a gênese desse modo de organização social. Como nosso comportamento veio a ser enquadrado pela simbolização?

A cultura surgiu e floresceu através da dominação da natureza, sendo o seu crescimento um parâmetro do controle progressivo que se desenvolveu com uma divisão do trabalho cada vez maior. Malinowski (1962) entendeu o simbolismo como a alma da civilização, principalmente sob a forma de linguagem como um meio de coordenar as ações ou de padronizar a técnica e de oferecer regras para o comportamento social, ritual e industrial.

É nossa queda em relação a uma simplicidade e uma exuberância de vida diretamente vivenciadas, em relação ao instante sensível do conhecer, que deixa uma lacuna que o simbólico nunca será capaz de preencher. Isso é o que está sempre sendo encoberto pelas camadas de consolos culturais, um subterfúgio civilizado que nunca é capaz de recuperar a plenitude perdida. Em um sentido muito profundo, apenas aquilo que é reprimido é simbolizado, porque apenas aquilo que é reprimido precisa ser simbolizado. A magnitude da simbolização atesta o quanto tem sido reprimido; algo que está soterrado, mas que talvez ainda possa ser resgatado.

Por um longo período de tempo, muito provavelmente de modo imperceptível, a divisão do trabalho avançou muito lentamente e afinal começou a arruinar a autonomia do indivíduo e um modo cara-a-cara de vida social. O vírus destinado a atingir a plena maturação sob a forma de civilização começou deste modo: como uma tese experimental sustentada por tudo aquilo que agora nos vitimiza. Da alienação inicial à civilização avançada, o percurso é marcado por cada vez mais reificação, dependência, burocratização, desolação espiritual e tecnificação estéril.

Não é de se admirar que a questão da origem do pensamento simbólico, a atmosfera mesma da civilização, surja com certa força. Por que a cultura deveria existir, em primeiro lugar, parece ser, cada vez mais, um modo mais apto de se colocar essa questão, em especial à luz da enorme antiguidade da inteligência humana agora comprovada, principalmente a partir da demonstração persuasiva de Thomas Wynn (1989) do que foi necessário para que se pudesse confeccionar as ferramentas de pedra de cerca de um milhão de anos atrás. Houve um hiato muito evidente entre a capacidade humana demonstrada e a iniciação da cultura simbólica, com milhares de gerações interpondo-se entre as duas.

A cultura é um fenômeno relativamente recente. A arte rupestre mais antiga, por exemplo, é de cerca de 30.000 anos atrás, e a agricultura somente teve início há aproximadamente 10.000 anos. O elemento perdido durante o vasto intervalo entre a época em que havia QI disponível para possibilitar a simbolização e a sua efetiva realização foi uma mudança em nossa relação com a natureza. Parece plausível ver nesse intervalo, em um nível que talvez nunca sejamos capazes de compreender, uma recusa em lutar pelo domínio da natureza. É possível que somente quando essa luta por domínio foi introduzida, provavelmente de um modo não-consciente, através de uma divisão do trabalho muito gradual, que a simbolização das experiências começou a consolidar-se.

No entanto, como tantas vezes se alega, a violência dos primitivos – sacrifício humano, canibalismo, caça de cabeças, escravidão, etc. – somente pode ser domada pela cultura simbólica/civilização. A resposta simples para esse estereótipo do primitivo é que a violência organizada não foi erradicada pela cultura, mas, na verdade, começou com ela. William J. Perry (1927) estudou vários povos do Novo Mundo e notou um contraste impressionante entre um grupo agrícola e um grupo não-domesticado. Ele considerou este último “muito inferior em cultura, mas isento dos costumes abomináveis [do primeiro].”. Ao passo que praticamente toda sociedade que adotou uma relação domesticada com a natureza, no mundo todo, tornou-se sujeita a práticas violentas, as sociedades não-agrícolas não conheciam a violência organizada. Durante muito tempo, os antropólogos focaram-se nos povos indígenas da Costa Noroeste [dos EUA] como uma rara exceção a essa regra-de-ouro. Embora fossem essencialmente um povo pescador, a certa altura eles introduziram escravos e estabeleceram uma sociedade extremamente hierárquica. Até mesmo aqui, contudo, a domesticação estava presente, sob a forma de cães domesticados e de tabaco como um cultivo menor.

Sucumbimos à objetificação e deixamos que uma rede de cultura nos controle e nos diga como viver, como se isso fosse um desenvolvimento natural. É qualquer coisa menos isso, e deveria estar claro para nós o que a cultura/civilização de fato nos trouxe, e do que ela nos privou.

O filósofo Richard Rorty (1979) descreveu a cultura como o conjunto de pretensões de conhecimento. No reino do ser simbólico, os sentidos são depreciados, por causa de sua separação e de sua atrofia sistemáticas sob a civilização. O sensível não é considerado uma fonte legítima de pretensões à verdade.

Nós, humanos, outrora permitíamos uma recepção plena e apreciativa da totalidade das impressões sensoriais, o que em alemão chama-se de Umwelt, ou o mundo à nossa volta. Heinz Werner (1940, 1963) argumentou que originalmente havia um único sentido, antes que as divisões na sociedade causassem a ruptura da unidade sensorial. Os povos não-agrícolas sobreviventes geralmente exibem, na interação e na interpenetração dos sentidos, uma consciência e um envolvimento sensoriais muito maiores do que os indivíduos domesticados (E. Carpenter, 1980). Exemplos impressionantes abundam, tal como o dos Bosquímanos, que são capazes de enxergar quatro luas de Júpiter a olho nu e são capazes de ouvir um avião monomotor de pequeno porte há aproximadamente 110 quilômetros de distância (Farb, 1978).

A cultura simbólica inibe a comunicação humana ao bloquear e, sob outros aspectos, suprimir os canais de consciência sensorial. Uma existência cada vez mais tecnológica nos força a rejeitar a maior parte daquilo que poderíamos vivenciar. A declaração de William Blake vem à mente:

“Se as portas da percepção fossem purificadas, tudo apareceria ao humano tal como é, infinito. Porque o humano fechou-se em si mesmo, ao ponto em que ele vê todas as coisas unicamente através das estreitas fendas de sua caverna.”

Laurens van der Post (1958) descreveu comunicação telepática entre os ǃKung na África, o que levou Richard Coan (1987) a caracterizar tais modos como “representando uma alternativa, em vez de um prelúdio ao tipo de civilização em que vivemos.”.

Em 1623, William Drummond escreveu: “Que doces satisfações a alma desfruta através dos sentidos. Eles são os portais e as janelas de seu conhecimento, os órgãos de seu deleite.”. De fato, o “Eu”, para não dizer a “Alma”, não existe na ausência das sensações corporais; não há estados de consciência não-sensoriais. Mas é demasiado evidente como nossos sentidos foram domesticados em uma atmosfera cultural simbólica: subjugados, separados e organizados em uma hierarquia reveladora. A visão, sob o signo da perspectiva linear moderna, predomina porque ela é o menos próximo dos sentidos, o que mais distancia. Ela é o meio através do qual o indivíduo foi transformado em um espectador, o mundo em um espetáculo, e o corpo em um objeto ou espécime. O primado do visual não é acidental, já que uma elevação excessiva da visão não apenas situa o observador fora do que ele vê, mas, em um nível mais fundamental, possibilita o princípio de controle ou de dominação. O som ou a audição como o suprassumo dos sentidos seria bem menos adequado à domesticação porque ele envolve e penetra tanto o falante quanto o ouvinte.

Outras faculdades sensíveis são bem mais desconsideradas. O olfato, que somente perde sua importância quando suprimido pela cultura, antes era um meio vital de conexão com o mundo. A literatura sobre a cognição ignora quase completamente o sentido do olfato, bem como o fato de que seu papel esteja agora tão circunscrito entre os humanos. Ele é, afinal, de pouca utilidade para fins de dominação; considerando-se como o olfato é capaz de evocar, tão diretamente, até mesmo lembranças muito distantes, talvez ele seja até mesmo uma espécie de faculdade antidominação. Lewis Thomas (1983) observou que “O ato de se cheirar algo, o que quer que seja, é, notavelmente, análogo ao próprio ato de pensar.”. E se não é assim que as coisas são atualmente, muito provavelmente é assim que elas costumavam ser e que deveriam ser novamente.

As experiências ou práticas táteis são outra área da sensibilidade à qual se espera que renunciemos em prol de substitutos simbólicos compensatórios. O sentido do tato de fato foi diminuído em uma existência sintética, ocupada com o trabalho e de longa distância. Há pouca ênfase e pouco tempo para o estímulo ou a comunicação táteis, muito embora essa privação gere consequências claramente negativas. Nuances de sensibilidade e de ternura são perdidas, e bem se sabe que bebês e crianças que raramente recebem colo, toque e carinho desenvolvem-se lentamente e em geral são retraídos emocionalmente.

Tocar, por definição, envolve sentir; ser “tocado” é sentir-se emocionalmente movido, um lembrete da força original do sentido do tato, tal como na expressão “manter contato”. A diminuição dessa categoria da sensibilidade, entre outras, tem tido graves consequências. A sua renovação, em um mundo ressensibilizado e reunido, trará uma potencialização da vida igualmente crucial. Tal como Tommy clamou, na ópera rock homônima da banda The Who: “Veja-me, sinta-me, toque-me, cure-me…”.

Assim como com os animais e as plantas, a terra, os rios e as emoções humanas, os sentidos foram isolados e subjugados. A noção aristotélica de um esquema “adequado” do universo decretava que “cada um dos sentidos tem sua esfera apropriada.”.

Freud, Marcuse e outros perceberam que a civilização demanda a sublimação ou repressão dos prazeres dos sentidos de proximidade, de tal forma que o indivíduo possa assim ser convertido em um instrumento de trabalho. O controle social, através da rede do simbólico, deliberadamente desempodera o corpo. Um contramundo alienado, levado a uma alienação cada vez mais profunda por uma divisão do trabalho cada vez maior, reduz na pessoa suas próprias sensações somáticas e a distrai fundamentalmente dos ritmos básicos de sua própria vida.

A ruptura definitiva entre mente e corpo, atribuída às formulações de Descartes no século XVII, é o sinal distintivo mesmo da sociedade moderna. Aquilo a que se tem referido como a grande “angústia cartesiana” em relação ao fantasma do caos intelectual e moral foi resolvido em favor da supressão da dimensão sensível e passional da existência humana. Mais uma vez, vemos o impulso de domesticação subjacente à cultura, o medo de não estar no controle, que agora acusa os sentidos por vingança. Doravante, a ciência e a tecnologia têm uma licença teórica para avançar sem limites, tendo o conhecimento sensível sido efetivamente erradicado em termos de pretensão à verdade ou à compreensão.

Percebendo o que essa barganha nos trouxe, uma reação profunda está surgindo contra o vasto projeto simbólico que nos oprime e que invade cada parte de nós. “Se não ‘voltarmos a si’ logo”, tal como julgou David Howes (1991), “teremos sido privados para sempre da chance de construir uma alternativa significativa à pseudoexistência que chamamos de vida em nossa atual ‘Civilização da Imagem’.”. A tarefa da crítica pode ser, de um modo mais fundamental, nos ajudar a compreender o que será necessário para chegarmos a um ponto em que estejamos verdadeiramente presentes uns para os outros e para o mundo.

A primeira separação parece ter sido o senso de tempo, que traz consigo uma perda do estar presente para si mesmo. O aumento desse senso é quase indistinguível do senso da alienação mesma. Se, tal como Lévi-Strauss (1966) coloca, “o traço característico da mente selvagem é sua atemporalidade”, viver no aqui e agora é algo que se perde graças à mediação das intervenções culturais. A presentidade é protelada pelo simbólico, e essa recusa do instante contingente é o nascimento do tempo. Caímos sob o feitiço daquilo que Eliade chamou de “terror da história”, na medida em que as representações opõem-se efetivamente à atração exercida pela experiência perceptiva imediata.

A obra The Myth of the Eternal Return [O mito do eterno retorno] (1954), de Mircea Eliade, ressalta o temor que todas as sociedades primitivas tiveram da história, da passagem do tempo. Por outro lado, as vozes da civilização tentaram celebrar nossa imersão nesse que é um dos mais básicos construtos culturais. Leroi-Gourhan (1964), por exemplo, viu na orientação pelo tempo “talvez o ato humano por excelência.”. Nossas percepções tornaram-se tão governadas e saturadas pelo tempo que é difícil imaginar a ausência geral do tempo: pelo mesmo motivo, é tão difícil vislumbrar, a esta altura, uma existência social não-alienada, não-simbólica e não-dividida.

A história, de acordo com Peterson e Goodall (1993), é marcada por uma amnésia a respeito de onde viemos. A sua estimulante obra Visions of Caliban [Visões de Caliban] também apontou para o fato de que nosso grande esquecimento pode muito bem ter começado com a linguagem, o dispositivo que deu origem ao mundo simbólico. A linguista comparativa Mary LeCron Foster (1978, 1980) acredita que a linguagem talvez tenha menos de 50.000 anos de existência e que ela surgiu com os primeiros impulsos em direção à arte, ao ritual e à diferenciação social. A simbolização verbal é o principal meio de estabelecer, definir e manter o mundo cultural e de estruturar nosso próprio pensamento.

Tal como Hegel disse algures, questionar a linguagem é questionar o ser. É muito importante, contudo, resistir a esse tipo de exagero e considerar a distinção, em primeiro lugar, entre a importância cultural da linguagem e as limitações que lhe são inerentes. Sustentar que tanto nós quanto o mundo somos nada além de criações linguísticas é apenas uma outra maneira de se dizer o quão penetrante e controladora é a cultura simbólica. Mas a afirmação de Hegel vai longe demais, e a declaração de George Herbert Mead (1934) de que para se ter uma mente é preciso que haja uma linguagem é igualmente hiperbólica e falsa.

A linguagem transforma o sentido e a comunicação, mas não é sinônima em relação a eles. O pensamento, tal como Vendler (1967) o compreendeu, é essencialmente independente da linguagem. Estudos de pacientes e de outras pessoas às quais faltam todos os aspectos da fala e da linguagem demonstram que o intelecto permanece vigoroso mesmo na ausência desses elementos (Lecours e Joanette, 1980; Donald, 1991). A afirmação de que a linguagem facilita enormemente o pensamento também é questionável, já que experimentos formais com crianças e adultos não demonstraram isso (G. Cohen, 1977). A linguagem claramente não é uma condição necessária para o pensar (vide Kertesz, 1988; Jansons, 1988).

A comunicação verbal é parte do movimento de afastamento em relação a uma realidade social cara-a-cara, tornando possível a separação física. A palavra sempre interpõe-se entre as pessoas que desejam conectar-se umas com as outras, facilitando a diminuição daquilo que não precisa ser falado para ser dito. Que nós decaímos a partir de um estado não-linguístico começa a parecer um ponto de vista sensato. Essa intuição pode estar por trás do juízo de George W. Morgan em 1968 de que “Nada, de fato, está mais sujeito à depreciação e à dúvida em nosso mundo desencantado do que a palavra.”.

A comunicação fora da civilização envolvia todos os sentidos, uma condição ligada aos traços-chave de abertura e de partilha que caracterizam os coletores-caçadores. A alfabetização nos levou à sociedade dos sentidos divididos e reduzidos, e damos essa perda sensorial por certa, como se ela fosse um estado natural, tal como damos a alfabetização por certa.

A cultura e a tecnologia existem por causa da linguagem. Muitos têm visto a fala, por sua vez, como um meio de coordenar o trabalho, isto é, como uma parte essencial da técnica de produção. A linguagem é crucial para a formação das regras trabalhistas e comerciais que acompanham a divisão do trabalho, com as especializações e padronizações da economia nascente correndo em paralelo às especializações e padronizações da linguagem. Guiado agora pela simbolização, um novo tipo de pensamento passa a predominar, um pensamento que se realiza na cultura e na tecnologia. A interdependência entre linguagem e tecnologia é pelo menos tão óbvia quanto a interdependência entre linguagem e cultura, e resulta em um domínio acelerado sobre o mundo natural intrinsecamente similar ao controle introduzido sobre um indivíduo outrora autônomo e sensível.

Noam Chomsky, um dos principais teóricos da linguagem, comete um erro grave e reacionário ao retratar a linguagem como um aspecto “natural” de uma “natureza humana essencial”, como algo inato e independente da cultura (1966, 1992). A sua perspectiva cartesiana vê a mente como uma máquina abstrata que é simplesmente destinada a produzir feixes de símbolos e a manipulá-los. Conceitos como origens ou alienação não encontram espaço nesse tecnoesquema estéril. Lieberman (1975) oferece uma retificação concisa e fundamental: “A linguagem humana somente poderia ter evoluído em relação à condição humana total.”.

O sentido original da palavra ‘definir’ é, do Latim, limitar ou fazer findar. A linguagem parece muitas vezes causar uma oclusão da experiência, ao invés de nos ajudar a mantermo-nos abertos à experiência. Quando sonhamos, o que acontece não é expresso em palavras, assim como aqueles que se amam comunicam-se mais profundamente sem a simbolização verbal. O que foi promovido pela linguagem que realmente contribuiu para o desenvolvimento do espírito humano? Em 1976, von Glasersfeld se perguntava “se, em um tempo futuro, ainda parecerá tão óbvio que a linguagem contribuiu para a sobrevivência da vida neste planeta.”.

O simbolismo numérico também é de fundamental importância para o desenvolvimento do mundo cultural. Em muitas sociedades primitivas, era e é considerado sinal de má sorte contar criaturas vivas, uma atitude antirreificação relacionada à noção primitiva comum de que nomear outrem é obter poder sobre essa pessoa. O ato de contar, tal como o de nomear, é parte do processo de domesticação. A divisão do trabalho presta-se ao quantificável, em oposição àquilo que é pleno em si mesmo, único, não-fragmentado. O número também é necessário para a abstração inerente à troca de mercadorias e é um pré-requisito para a disparada da ciência e da tecnologia. O impulso de medir envolve um tipo deformado de conhecimento que busca o controle de seu objeto, e não a sua compreensão.

O sentimento de que “a única forma de realmente apreendermos as coisas é através da arte.” é uma opinião trivial, que realça nossa dependência em relação aos símbolos e à representação. “O fato de que originalmente toda arte era ‘sagrada’” (Eliade, 1985), isto é, pertencente a uma esfera separada, atesta seu status ou função original.

A arte está entre as primeiras formas de expressividade ideológica e ritual, desenvolvida juntamente com as observâncias religiosas planejadas para manter unida uma vida comunitária que estava começando a se fragmentar. Ela foi um meio fundamental de facilitar a integração social e a diferenciação econômica (Dickson, 1990), provavelmente ao codificar informações para registrar pertencimento a um grupo, status e posição (Lumsden e Wilson, 1983). Antes dessa época, em algum momento durante o Paleolítico Superior, dispositivos para a manutenção da coesão social eram desnecessários; a divisão do trabalho, as funções separadas e a territorialidade parecem ter sido em grande medida inexistentes. À medida que as tensões e as inquietações começaram a emergir na vida social, a arte e o resto da cultura surgiram junto com elas em resposta a sua presença perturbadora.

A arte, tal como a religião, surgiu de uma sensação original de inquietude, sem dúvida de modo sutil, mas poderosamente perturbadora em sua novidade e em sua gradação invasiva. Em 1900, Hirn escreveu sobre uma antiga insatisfação que motivava a busca artística por uma “expressão mais plena e mais profunda” como “compensação para as novas deficiências da vida.”. No entanto, as soluções culturais não lidam com os deslocamentos mais profundos dos quais as próprias “soluções” culturais fazem parte. Inversamente, tal como comentadores tão diferentes quanto Henry Miller e Theodor Adorno concluíram, não haveria necessidade de arte em um mundo desalienado. Aquilo que a arte tem se esforçado em vão por capturar e expressar seria, mais uma vez, a própria realidade, sendo relegado ao esquecimento o falso antídoto que é a cultura.

A arte é uma linguagem, assim como o ritual, evidentemente, também o é, dentre as primeiras instituições culturais e simbólicas. Julia Kristeva (1989) comentou sobre “a estreita relação entre gramática e ritual”, e os estudos de Frits Staal acerca do ritual védico (1982, 1986, 1988) demonstraram para ele que a sintaxe pode explicar completamente a forma e o significado do ritual. Tal como Chris Knight (1994) notou, a fala e o ritual são “aspectos interdependentes de um só e o mesmo domínio simbólico.”.

Essencial para o avanço do cultural nas questões humanas, o ritual não é apenas um meio de ordenar ou de regular as emoções; ele é também uma formalização que está intimamente ligada às hierarquias e ao domínio formal sobre os indivíduos. Todas as sociedades tribais e civilizações antigas conhecidas tinham organizações hierárquicas construídas sobre ou integradas por uma estrutura ritual e um sistema conceitual correspondente.

Exemplos da conexão entre ritual e desigualdade, desenvolvendo-se até mesmo antes da agricultura, são generalizados (Gans, 1985; Conkey, 1984). Os ritos cumprem uma função de válvula de segurança para a descarga de tensões geradas pelas divisões que surgem na sociedade e operam na criação e na manutenção da coesão social. Anteriormente, não havia necessidade de artifícios para unificar aquilo que ainda era, em um contexto de não-divisão do trabalho, pleno e não-estratificado.

Com frequência, se ouve dizer que a função do símbolo é revelar estruturas do real que são inacessíveis à observação empírica. Mais pertinente, contudo, em termos dos processos da cultura e da civilização, é a afirmação de Abner Cohen (1981, 1993) de que o simbolismo e o ritual dissimulam, mistificam e santificam deveres e funções penosos, fazendo-os, assim, parecer desejáveis. Ou, tal como David Parkin (1992) coloca, a natureza compulsória do ritual embota a autonomia natural dos indivíduos ao colocá-los a serviço da autoridade.

Aparentemente oposto à alienação, o contramundo dos ritos públicos estaria organizado contra a corrente da direção histórica. Mas, mais uma vez, isso é uma ilusão, já que o ritual facilita o estabelecimento da ordem cultural, alicerce da teoria e da prática alienadas. As estruturas de autoridade ritual cumprem uma importante função na organização da produção (divisão do trabalho) e promovem ativamente o advento da domesticação. As categorias simbólicas são estabelecidas para controlar aquilo que é selvagem e estranho; assim, a dominação das mulheres é perpetrada, um desenvolvimento levado à plena realização com a agricultura, quando as mulheres tornam-se essencialmente bestas de carga e/ou objetos sexuais. Parte dessa mudança fundamental é o movimento em direção ao territorialismo e à guerra; Johnson e Earle (1987) discutiram a correspondência entre esse movimento e a importância crescente do cerimonialismo.

De acordo com James Shreeve (1995), “No registro etnográfico, onde quer que se encontre desigualdade, ela é justificada ao se invocar o sagrado.”. De modo similar, todo simbolismo, diz Eliade (1985), era originalmente simbolismo religioso. A desigualdade social parece ser acompanhada pela subjugação na esfera não-humana. M. Reinach (citado em Radin, 1927) disse: “graças à magia, o humano toma a ofensiva contra o mundo objetivo.”. Cassirer (1955) expressou essa ideia deste modo: “A natureza nada produz sem cerimônias.”.

A partir da ação ritual surgiu o xamã, que foi não apenas o primeiro especialista em virtude de sua função nessa área, mas também o primeiro profissional cultural em geral. A mais antiga forma de arte foi realizada por xamãs, à medida que eles assumiram a liderança ideológica e delinearam o conteúdo dos rituais.

Esse especialista original tornou-se o regulador das emoções coletivas, e à medida que o poder do xamã aumentava, ocorria uma redução correspondente da vitalidade psíquica do resto do grupo (Lommel, 1967). A autoridade centralizada, e provavelmente também a religião, desenvolveram-se a partir da posição elevada do xamã. O fantasma da complexidade social estava encarnado nesse indivíduo que exercia o poder simbólico. Todos os líderes e chefes desenvolveram-se a partir do predomínio dessa figura na vida dos outros integrantes do grupo.

A religião, assim como a arte, contribuiu para uma gramática simbólica em comum necessária à nova ordem social e suas fissuras e aflições. A palavra é baseada no termo latino ‘religare’, atar ou ligar, e em uma raiz verbal grega que denota observância do ritual, fidelidade às regras. A integração social, exigida pela primeira vez, fica evidente como o ímpeto da religião.

A religião é uma resposta às inseguranças e tensões, prometendo resolução e transcendência por meio do simbólico. A religião não encontra base para a sua existência antes de tomarmos o caminho errado em direção à cultura e ao civilizado (domesticado). O filósofo estadunidense George Santayana sintetizou bem essa ideia com a frase: “Um outro mundo no qual viver é o que se quer dizer com a palavra religião.”.

Desde a obra The Descent of Man [A descendência do homem] (1871) de Darwin, temos a compreensão de que a evolução humana acelerou enormemente em termos culturais em um período de mudanças fisiológicas insignificantes. Deste modo, o ser simbólico não dependia de ter que esperar pelas faculdades certas para poder evoluir. Podemos perceber agora, com Clive Gamble (1994), que a intenção nas ações humanas não surgiu com a domesticação/agricultura/civilização.

Os habitantes nativos do Deserto do Kalahari na África, tal como estudados por Laurens van der Post (1976), viviam em “um estado de completa confiança, dependência e interdependência em relação à natureza”, que era “muito mais generosa com eles do que qualquer civilização já foi um dia.”. O igualitarismo e a partilha eram as qualidades distintivas da vida caçadora-coletora (G. Isaac, 1976; Ingold, 1987, 1988; Erdal e Whiten, 1992; etc.), que é mais adequadamente chamada de vida coletora-caçadora, ou o modo forrageador. Na verdade, a maior parte dessa dieta consistia de matéria vegetal, e não há evidências conclusivas de qualquer tipo de caça antes do Paleolítico Superior (Binford, 1984, 1985).

Um olhar instrutivo às sociedades primitivas contemporâneas é o trabalho de Colin Turnbull (1961, 1965) sobre os pigmeus da floresta de Ituri e seus vizinhos Bantus. Os pigmeus são forrageadores, vivendo sem religião ou cultura. Eles são vistos como imorais e ignorantes pelos Bantus – que são agricultores –, mas desfrutam de uma individualidade e de uma liberdade muito maiores. Para a irritação dos Bantus, os pigmeus zombam com irreverência de seus ritos solenes e de seu senso de pecado. Rejeitando o territorialismo, muito menos respeitando a propriedade privada, eles “movem-se livremente em um mundo social não-mapeado, não-sistematizado e sem fronteiras.”, de acordo com Mary Douglas (1973).

A vasta era anterior ao surgimento do ser simbólico é uma realidade extremamente importante e um ponto de interrogação para algumas pessoas. Comentando a respeito desse “período que se estende ao longo de mais de um milhão de anos”, Tim Ingold (1993) chamou-o de “um dos mais profundos enigmas de que se tem conhecimento na ciência arqueológica.”. Mas a longevidade dessa época estável e não-cultural tem uma explicação simples: tal como F. Goodman (1988) conjecturou, “Era uma existência tão harmoniosa, e uma adaptação tão bem-sucedida, que ela não se alterou materialmente por milhares de anos.”.

A cultura enfim triunfou com a domesticação. O âmbito da vida tornou-se menor, mais especializado, separado à força de sua graça anterior e de sua liberdade espontânea. O ataque da orientação simbólica contra o natural também teve consequências exteriores imediatas. Desenhos rupestres primitivos, encontrados há 200 quilômetros de distância do córrego mais próximo registrado no Saara, mostram pessoas nadando. Os elefantes ainda eram relativamente comuns em certas zonas da costa do Mediterrâneo em 500 a.C., de acordo com Heródoto. O historiador Clive Ponting (1992) mostrou que todas as civilizações reduziram a saúde de seu meio ambiente.

E o cultivo definitivamente não ofereceu uma base alimentar mais confiável ou de maior qualidade (M. N. Cohen, 1989; Walker e Shipman, 1996), muito embora ele tenha introduzido doenças de todos os tipos, quase totalmente desconhecidas fora da civilização (Burkitt, 1978; Freund, 1982), bem como a desigualdade sexual (M. Ehrenberg, 1989; A. Getty, 1996). A obra Book of the Hopi [O livro dos Hopis] (1963) de Frank Waters nos oferece um retrato impressionante de uma divisão do trabalho descontrolada e da pobreza do simbólico: “Cada vez mais eles negociavam em troca de coisas das quais não precisavam, e quanto mais bens adquiriam, mais eles queriam. Isso era muito grave. Porque eles não estavam se dando conta de que estavam se afastando, passo a passo, da boa vida que haviam recebido.”.

Um capítulo pertinente da obra The Time Before History [A época antes da História] (1996) de Colin Tudge leva um título que fala por volumes inteiros: “The End of Eden: Farming” [O fim do Éden: a agricultura]. Uma distinção epistemológica subjacente é em grande medida revelada neste contraste traçado por Ingold (1993): “Em suma, enquanto para os agricultores e pastores a ferramenta é um instrumento de controle, entre os caçadores e coletores ela seria mais bem compreendida como um instrumento de revelação.”. E cabe citar Horkheimer (1978), em termos dos custos psíquicos da domesticação/dominação da natureza: “a destruição da vida interior é a pena que o humano tem que pagar por não ter respeito por qualquer outra forma de vida que não a sua própria.”. A violência voltada para fora é ao mesmo tempo infligida espiritualmente, e o mundo exterior é transformado, degradado, tão certamente quanto o fato de que o campo perceptivo foi submetido a uma redefinição fundamental. Com certeza, a natureza não instituiu a civilização; pelo contrário, a civilização impôs-se à natureza.

Hoje em dia está na moda, para não se dizer que é obrigatório, afirmar que a cultura sempre existiu e sempre existirá. Muito embora seja o caso, demonstravelmente, que houve uma era humana não-simbólica extremamente longa, talvez cem vezes mais longa do que a era da civilização, e que a cultura tenha se desenvolvido tão-somente às custas da natureza, se ouve de todos os lados que o simbólico – tal como a alienação – é eterno. Portanto, questões como a das origens e dos destinos não fazem sentido. Nada pode ser perscrutado para além do nível semiótico no qual tudo está aprisionado.

Mas os limites da racionalidade dominante e os danos causados pela civilização saltam por demais aos olhos para que aceitemos esse tipo de subterfúgio. Desde o predomínio do simbólico, os humanos têm tentado recuperar, através da participação na cultura, a autenticidade que outrora vivenciávamos. O impulso ou a busca constantes pelo transcendente evidenciam que a hegemonia da ausência é uma constante cultural. Tal como Thomas McFarland (1987) declarou: “a cultura presencia essencialmente a ausência de sentido, não a sua presença.”.

O consumo massivo e insatisfatório, dentro dos ditames da produção e do controle social, impera como o principal consolo cotidiano para essa ausência de sentido, e, certamente, a cultura é ela mesma uma preferência de consumo de primeira ordem. Em seu nível mais fundamental, é a divisão do trabalho que impõe nossa totalidade simbólica falsa e mutiladora. “O aumento da especialização […]”, escreveu Peter Lomas (1996), “mina nossa confiança em nossa capacidade habitual de viver.”.

Somos capturados pela lógica cultural de objetificação e pela lógica objetificadora da cultura, de modo que aqueles que sugerem novas formas de ritual e outras formas de representação como o caminho para uma existência reencantada perdem completamente o fio da meada. Mais daquilo que falhou durante tanto tempo dificilmente pode ser a resposta. Lévi-Strauss (1978) referiu-se a “um tipo de sabedoria [que os povos primitivos] praticavam espontaneamente, cuja rejeição pelo mundo moderno constitui a verdadeira loucura.”.

Ou a saúde não-simbólica que outrora existia, em todas as suas dimensões, ou a loucura e a morte. A cultura nos levou a trair nosso próprio espírito e nossa própria plenitude aborígines, rumo a um reino cada vez pior de alienação sintética, isoladora e estéril; o que não quer dizer que não haja mais prazeres cotidianos, sem os quais perderíamos nossa humanidade. Mas à medida que nossa crise se aprofunda, vislumbramos o quanto precisa ser eliminado em prol de nossa redenção.

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