Correndo no vazio: o fracasso do pensamento simbólico

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por John Zerzan

“Se não ‘voltarmos a si’ logo, teremos sido privados para sempre da chance de construir uma alternativa significativa à pseudoexistência que chamamos de vida em nossa atual ‘Civilização da Imagem’.” ― David Howes

Em que medida pode-se dizer que estamos realmente vivendo? Ao passo que a substância da cultura parece desvanecer e oferecer cada vez menos consolo para nossas vidas conturbadas, somos levados a olhar mais profundamente para nossos tempos estéreis e para o lugar que a própria cultura ocupa em tudo isso.

Um angustiado Ted Sloan pergunta-se (1996): “Qual é o problema com a modernidade? Por que as sociedades modernas têm tanta dificuldade em criar adultos capazes de intimidade, atividade criativa, satisfação e uma vida ética? Por que os sinais da vida danificada são tão preponderantes?”. De acordo com David Morris (1994), “o sofrimento e a depressão crônicos, geralmente conectados e ocasionalmente considerados até mesmo como um só e o mesmo distúrbio, constituem uma imensa crise no cerne da vida pós-moderna.”. Temos o ciberespaço, a realidade virtual e a comunicação computadorizada instantânea na aldeia global; e, no entanto, alguma vez já nos sentimos tão empobrecidos e isolados quanto nos encontramos hoje?

Tal como Freud previu que a consumação da civilização implicaria a infelicidade neurótica universal, correntes anticivilização estão crescendo em resposta à indigência psíquica que nos cerca. Assim, a vida simbólica, essência da civilização, encontra-se agora sob fogo cerrado.

Pode-se ainda dizer que esse elemento dentre os mais familiares, ainda que artificial, é o menos compreendido, mas a urgência da necessidade move a crítica, e muitos de nós sentem-se impelidos a investigar a fundo esse modo de vida que torna-se cada vez pior. De uma sensação de se estar aprisionado e limitado pelos símbolos advém a tese de que o grau em que o pensamento e a emoção estão atrelados ao simbolismo é a medida pela qual a ausência ocupa o mundo interior e destrói o mundo exterior.

Ao que parece, passamos pela experiência de uma queda na representação, cuja profundidade e cujas consequências somente agora estão sendo perscrutadas inteiramente. Em um tipo fundamental de falsificação, os símbolos primeiramente mediaram a realidade e, em seguida, substituíram-na. Atualmente, vivemos dentro dos símbolos em um grau muito maior do que vivemos em nosso eu corporal ou diretamente uns com os outros.

Quanto mais entranhado em nós esse sistema representacional interno estiver, tanto mais distanciados da realidade à nossa volta ficaremos. Outras conexões e outras perspectivas cognitivas foram inibidas, para se dizer o mínimo, à medida que a comunicação simbólica e sua miríade de esquemas representacionais perpetraram uma alienação em relação à realidade e uma traição dessa mesma realidade.

Essa interposição e a distorção e o distanciamento concomitantes são ideológicos em um sentido primário e original; toda ideologia subsequente é um eco dessa primeira. Debord descreveu a sociedade contemporânea como uma sociedade que bane a vida em favor de sua representação: as imagens agora assumiram as rédeas e comandam a vida. Mas isso é tudo menos um problema novo. Há um imperialismo ou expansionismo da cultura desde o início. E o quanto exatamente a cultura conquista? A filosofia hoje diz que é a linguagem que pensa e fala. Mas em que medida sempre foi assim? A simbolização é linear, sucessiva, substitutiva; ela é incapaz de manter-se aberta ao objeto em sua totalidade simultaneamente. Sua razão instrumental é nada mais do que isto: manipuladora e em busca de domínio. Sua abordagem é “que ‘a’ represente ‘b’”, ao invés de “que ‘a’ seja ‘b’”. A linguagem tem suas bases no esforço por conceptualizar e igualar aquilo que não é igual, ignorando assim a essência e a diversidade de uma riqueza variada e variável.

O simbolismo é um império vasto e profundo que reflete uma visão de mundo e a torna coerente, e é ele mesmo uma visão de mundo baseada no afastamento em relação ao sentido humano imediato e inteligível.

James Shreeve, ao final de sua obra The Neandertal Enigma [O enigma do Neandertal] (1995), oferece uma bela ilustração de uma alternativa ao ser simbólico. Meditando a respeito de como uma consciência não-simbólica original poderia ter sido, ele suscita importantes distinções e possibilidades:

“[…] ao passo que se pode dizer que os deuses dos modernos habitam a terra, o búfalo ou as folhas da relva, o espírito do Neandertal era o animal ou a folha da relva, a coisa e sua alma percebidas como uma força vital una, sem a necessidade de distingui-las com nomes separados. De modo semelhante, a ausência de expressão artística não impede a apreensão daquilo que é artístico no mundo. Os Neandertais não pintavam suas cavernas com imagens de animais. Mas talvez eles não tivessem a necessidade de destilar a vida em representações, porque suas essências já haviam sido reveladas para os seus sentidos. A visão de uma manada em movimento era suficiente para inspirar um senso de beleza arrebatador. Eles não tinham tambores ou flautas de osso, mas eles podiam ouvir os ritmos retumbantes do vento, da terra e dos batimentos cardíacos uns dos outros, e ser transportados.”

Em vez de celebrar a comunhão cognitiva com o mundo que Shreeve sugere que outrora desfrutávamos, e muito menos de embarcar no projeto de tentar recuperá-la, o uso dos símbolos é, claro, amplamente considerado o sinal distintivo da cognição humana. Goethe disse “Tudo é símbolo.”, enquanto o capitalismo industrial, marco da mediação e da alienação, ascendia. Por volta da mesma época, Kant determinou que a chave para a filosofia encontra-se na resposta à questão: “Qual é o fundamento da relação daquilo em nós que chamamos de ‘representação’ com o objeto?”. Infelizmente, ele legou ao pensamento moderno uma resposta ahistórica e fundamentalmente inadequada, a saber, que nós simplesmente não somos constituídos de modo a sermos capazes de compreender a realidade diretamente. Dois séculos mais tarde (1981), Emmanuel Levinas chegou muito mais perto do cerne da questão com sua afirmação de que “A filosofia, em sua diacronia mesma, é a consciência da ruptura da consciência.”.

Eli Sagan (1985) foi o porta-voz de inúmeras outras pessoas ao declarar que a necessidade de simbolizar e de viver em um mundo simbólico é, tal como a agressão, uma necessidade humana tão básica que “ela somente pode ser negada sob pena de um severo transtorno psíquico.”. No entanto, a necessidade de símbolos – e de violência – nem sempre prevaleceu. Em vez disso, eles têm suas origens no bloqueio e na fragmentação de uma plenitude primitiva, no processo de domesticação do qual a civilização surgiu. Aparentemente impulsionada por um aumento em gradual aceleração na divisão do trabalho que começou a consolidar-se no Paleolítico Superior, a cultura emergiu como tempo, linguagem, arte, número e, finalmente, agricultura.

A palavra ‘cultura’ deriva do termo latino ‘cultura’, que refere-se ao cultivo do solo; isto é, à domesticação de plantas e de animais – e de nós mesmos no processo. Um espírito inquieto de inovação e de ansiedade tem, em grande medida, nos acompanhado desde então, ao passo que modos simbólicos em contínua mutação tentam consertar aquilo que não pode ser remediado sem que se rejeite o simbólico e seu mundo alienado.

Na esteira de Durkheim, Leslie White (1949) escreveu: “O comportamento humano é comportamento simbólico; o comportamento simbólico é comportamento humano. O símbolo é o universo da humanidade.”. É passada a hora de percebermos tais pronunciamentos como ideologia, que serve para apoiar a falsificação fundamental subjacente a uma falsa consciência que abarca praticamente tudo. Mas se um mundo simbólico plenamente desenvolvido não é, em suma, na afirmação vaga de Northrop Frye (1981), “o estatuto de nossa liberdade”, o antropólogo Clifford Geertz (1965) chega mais perto da verdade ao dizer que, em geral, somos dependentes “da orientação proporcionada pelos sistemas de símbolos significativos.”. Ainda mais perto chegou Cohen (1974), que observou que “os símbolos são essenciais para o desenvolvimento e a manutenção da ordem social.”. O conjunto dos símbolos representa a ordem social e o lugar que o indivíduo ocupa dentro dela, uma formulação que sempre deixa inquestionada a gênese desse modo de organização social. Como nosso comportamento veio a ser enquadrado pela simbolização?

A cultura surgiu e floresceu através da dominação da natureza, sendo o seu crescimento um parâmetro do controle progressivo que se desenvolveu com uma divisão do trabalho cada vez maior. Malinowski (1962) entendeu o simbolismo como a alma da civilização, principalmente sob a forma de linguagem como um meio de coordenar as ações ou de padronizar a técnica e de oferecer regras para o comportamento social, ritual e industrial.

É nossa queda em relação a uma simplicidade e uma exuberância de vida diretamente vivenciadas, em relação ao instante sensível do conhecer, que deixa uma lacuna que o simbólico nunca será capaz de preencher. Isso é o que está sempre sendo encoberto pelas camadas de consolos culturais, um subterfúgio civilizado que nunca é capaz de recuperar a plenitude perdida. Em um sentido muito profundo, apenas aquilo que é reprimido é simbolizado, porque apenas aquilo que é reprimido precisa ser simbolizado. A magnitude da simbolização atesta o quanto tem sido reprimido; algo que está soterrado, mas que talvez ainda possa ser resgatado.

Por um longo período de tempo, muito provavelmente de modo imperceptível, a divisão do trabalho avançou muito lentamente e afinal começou a arruinar a autonomia do indivíduo e um modo cara-a-cara de vida social. O vírus destinado a atingir a plena maturação sob a forma de civilização começou deste modo: como uma tese experimental sustentada por tudo aquilo que agora nos vitimiza. Da alienação inicial à civilização avançada, o percurso é marcado por cada vez mais reificação, dependência, burocratização, desolação espiritual e tecnificação estéril.

Não é de se admirar que a questão da origem do pensamento simbólico, a atmosfera mesma da civilização, surja com certa força. Por que a cultura deveria existir, em primeiro lugar, parece ser, cada vez mais, um modo mais apto de se colocar essa questão, em especial à luz da enorme antiguidade da inteligência humana agora comprovada, principalmente a partir da demonstração persuasiva de Thomas Wynn (1989) do que foi necessário para que se pudesse confeccionar as ferramentas de pedra de cerca de um milhão de anos atrás. Houve um hiato muito evidente entre a capacidade humana demonstrada e a iniciação da cultura simbólica, com milhares de gerações interpondo-se entre as duas.

A cultura é um fenômeno relativamente recente. A arte rupestre mais antiga, por exemplo, é de cerca de 30.000 anos atrás, e a agricultura somente teve início há aproximadamente 10.000 anos. O elemento perdido durante o vasto intervalo entre a época em que havia QI disponível para possibilitar a simbolização e a sua efetiva realização foi uma mudança em nossa relação com a natureza. Parece plausível ver nesse intervalo, em um nível que talvez nunca sejamos capazes de compreender, uma recusa em lutar pelo domínio da natureza. É possível que somente quando essa luta por domínio foi introduzida, provavelmente de um modo não-consciente, através de uma divisão do trabalho muito gradual, que a simbolização das experiências começou a consolidar-se.

No entanto, como tantas vezes se alega, a violência dos primitivos – sacrifício humano, canibalismo, caça de cabeças, escravidão, etc. – somente pode ser domada pela cultura simbólica/civilização. A resposta simples para esse estereótipo do primitivo é que a violência organizada não foi erradicada pela cultura, mas, na verdade, começou com ela. William J. Perry (1927) estudou vários povos do Novo Mundo e notou um contraste impressionante entre um grupo agrícola e um grupo não-domesticado. Ele considerou este último “muito inferior em cultura, mas isento dos costumes abomináveis [do primeiro].”. Ao passo que praticamente toda sociedade que adotou uma relação domesticada com a natureza, no mundo todo, tornou-se sujeita a práticas violentas, as sociedades não-agrícolas não conheciam a violência organizada. Durante muito tempo, os antropólogos focaram-se nos povos indígenas da Costa Noroeste [dos EUA] como uma rara exceção a essa regra-de-ouro. Embora fossem essencialmente um povo pescador, a certa altura eles introduziram escravos e estabeleceram uma sociedade extremamente hierárquica. Até mesmo aqui, contudo, a domesticação estava presente, sob a forma de cães domesticados e de tabaco como um cultivo menor.

Sucumbimos à objetificação e deixamos que uma rede de cultura nos controle e nos diga como viver, como se isso fosse um desenvolvimento natural. É qualquer coisa menos isso, e deveria estar claro para nós o que a cultura/civilização de fato nos trouxe, e do que ela nos privou.

O filósofo Richard Rorty (1979) descreveu a cultura como o conjunto de pretensões de conhecimento. No reino do ser simbólico, os sentidos são depreciados, por causa de sua separação e de sua atrofia sistemáticas sob a civilização. O sensível não é considerado uma fonte legítima de pretensões à verdade.

Nós, humanos, outrora permitíamos uma recepção plena e apreciativa da totalidade das impressões sensoriais, o que em alemão chama-se de Umwelt, ou o mundo à nossa volta. Heinz Werner (1940, 1963) argumentou que originalmente havia um único sentido, antes que as divisões na sociedade causassem a ruptura da unidade sensorial. Os povos não-agrícolas sobreviventes geralmente exibem, na interação e na interpenetração dos sentidos, uma consciência e um envolvimento sensoriais muito maiores do que os indivíduos domesticados (E. Carpenter, 1980). Exemplos impressionantes abundam, tal como o dos Bosquímanos, que são capazes de enxergar quatro luas de Júpiter a olho nu e são capazes de ouvir um avião monomotor de pequeno porte há aproximadamente 110 quilômetros de distância (Farb, 1978).

A cultura simbólica inibe a comunicação humana ao bloquear e, sob outros aspectos, suprimir os canais de consciência sensorial. Uma existência cada vez mais tecnológica nos força a rejeitar a maior parte daquilo que poderíamos vivenciar. A declaração de William Blake vem à mente:

“Se as portas da percepção fossem purificadas, tudo apareceria ao humano tal como é, infinito. Porque o humano fechou-se em si mesmo, ao ponto em que ele vê todas as coisas unicamente através das estreitas fendas de sua caverna.”

Laurens van der Post (1958) descreveu comunicação telepática entre os ǃKung na África, o que levou Richard Coan (1987) a caracterizar tais modos como “representando uma alternativa, em vez de um prelúdio ao tipo de civilização em que vivemos.”.

Em 1623, William Drummond escreveu: “Que doces satisfações a alma desfruta através dos sentidos. Eles são os portais e as janelas de seu conhecimento, os órgãos de seu deleite.”. De fato, o “Eu”, para não dizer a “Alma”, não existe na ausência das sensações corporais; não há estados de consciência não-sensoriais. Mas é demasiado evidente como nossos sentidos foram domesticados em uma atmosfera cultural simbólica: subjugados, separados e organizados em uma hierarquia reveladora. A visão, sob o signo da perspectiva linear moderna, predomina porque ela é o menos próximo dos sentidos, o que mais distancia. Ela é o meio através do qual o indivíduo foi transformado em um espectador, o mundo em um espetáculo, e o corpo em um objeto ou espécime. O primado do visual não é acidental, já que uma elevação excessiva da visão não apenas situa o observador fora do que ele vê, mas, em um nível mais fundamental, possibilita o princípio de controle ou de dominação. O som ou a audição como o suprassumo dos sentidos seria bem menos adequado à domesticação porque ele envolve e penetra tanto o falante quanto o ouvinte.

Outras faculdades sensíveis são bem mais desconsideradas. O olfato, que somente perde sua importância quando suprimido pela cultura, antes era um meio vital de conexão com o mundo. A literatura sobre a cognição ignora quase completamente o sentido do olfato, bem como o fato de que seu papel esteja agora tão circunscrito entre os humanos. Ele é, afinal, de pouca utilidade para fins de dominação; considerando-se como o olfato é capaz de evocar, tão diretamente, até mesmo lembranças muito distantes, talvez ele seja até mesmo uma espécie de faculdade antidominação. Lewis Thomas (1983) observou que “O ato de se cheirar algo, o que quer que seja, é, notavelmente, análogo ao próprio ato de pensar.”. E se não é assim que as coisas são atualmente, muito provavelmente é assim que elas costumavam ser e que deveriam ser novamente.

As experiências ou práticas táteis são outra área da sensibilidade à qual se espera que renunciemos em prol de substitutos simbólicos compensatórios. O sentido do tato de fato foi diminuído em uma existência sintética, ocupada com o trabalho e de longa distância. Há pouca ênfase e pouco tempo para o estímulo ou a comunicação táteis, muito embora essa privação gere consequências claramente negativas. Nuances de sensibilidade e de ternura são perdidas, e bem se sabe que bebês e crianças que raramente recebem colo, toque e carinho desenvolvem-se lentamente e em geral são retraídos emocionalmente.

Tocar, por definição, envolve sentir; ser “tocado” é sentir-se emocionalmente movido, um lembrete da força original do sentido do tato, tal como na expressão “manter contato”. A diminuição dessa categoria da sensibilidade, entre outras, tem tido graves consequências. A sua renovação, em um mundo ressensibilizado e reunido, trará uma potencialização da vida igualmente crucial. Tal como Tommy clamou, na ópera rock homônima da banda The Who: “Veja-me, sinta-me, toque-me, cure-me…”.

Assim como com os animais e as plantas, a terra, os rios e as emoções humanas, os sentidos foram isolados e subjugados. A noção aristotélica de um esquema “adequado” do universo decretava que “cada um dos sentidos tem sua esfera apropriada.”.

Freud, Marcuse e outros perceberam que a civilização demanda a sublimação ou repressão dos prazeres dos sentidos de proximidade, de tal forma que o indivíduo possa assim ser convertido em um instrumento de trabalho. O controle social, através da rede do simbólico, deliberadamente desempodera o corpo. Um contramundo alienado, levado a uma alienação cada vez mais profunda por uma divisão do trabalho cada vez maior, reduz na pessoa suas próprias sensações somáticas e a distrai fundamentalmente dos ritmos básicos de sua própria vida.

A ruptura definitiva entre mente e corpo, atribuída às formulações de Descartes no século XVII, é o sinal distintivo mesmo da sociedade moderna. Aquilo a que se tem referido como a grande “angústia cartesiana” em relação ao fantasma do caos intelectual e moral foi resolvido em favor da supressão da dimensão sensível e passional da existência humana. Mais uma vez, vemos o impulso de domesticação subjacente à cultura, o medo de não estar no controle, que agora acusa os sentidos por vingança. Doravante, a ciência e a tecnologia têm uma licença teórica para avançar sem limites, tendo o conhecimento sensível sido efetivamente erradicado em termos de pretensão à verdade ou à compreensão.

Percebendo o que essa barganha nos trouxe, uma reação profunda está surgindo contra o vasto projeto simbólico que nos oprime e que invade cada parte de nós. “Se não ‘voltarmos a si’ logo”, tal como julgou David Howes (1991), “teremos sido privados para sempre da chance de construir uma alternativa significativa à pseudoexistência que chamamos de vida em nossa atual ‘Civilização da Imagem’.”. A tarefa da crítica pode ser, de um modo mais fundamental, nos ajudar a compreender o que será necessário para chegarmos a um ponto em que estejamos verdadeiramente presentes uns para os outros e para o mundo.

A primeira separação parece ter sido o senso de tempo, que traz consigo uma perda do estar presente para si mesmo. O aumento desse senso é quase indistinguível do senso da alienação mesma. Se, tal como Lévi-Strauss (1966) coloca, “o traço característico da mente selvagem é sua atemporalidade”, viver no aqui e agora é algo que se perde graças à mediação das intervenções culturais. A presentidade é protelada pelo simbólico, e essa recusa do instante contingente é o nascimento do tempo. Caímos sob o feitiço daquilo que Eliade chamou de “terror da história”, na medida em que as representações opõem-se efetivamente à atração exercida pela experiência perceptiva imediata.

A obra The Myth of the Eternal Return [O mito do eterno retorno] (1954), de Mircea Eliade, ressalta o temor que todas as sociedades primitivas tiveram da história, da passagem do tempo. Por outro lado, as vozes da civilização tentaram celebrar nossa imersão nesse que é um dos mais básicos construtos culturais. Leroi-Gourhan (1964), por exemplo, viu na orientação pelo tempo “talvez o ato humano por excelência.”. Nossas percepções tornaram-se tão governadas e saturadas pelo tempo que é difícil imaginar a ausência geral do tempo: pelo mesmo motivo, é tão difícil vislumbrar, a esta altura, uma existência social não-alienada, não-simbólica e não-dividida.

A história, de acordo com Peterson e Goodall (1993), é marcada por uma amnésia a respeito de onde viemos. A sua estimulante obra Visions of Caliban [Visões de Caliban] também apontou para o fato de que nosso grande esquecimento pode muito bem ter começado com a linguagem, o dispositivo que deu origem ao mundo simbólico. A linguista comparativa Mary LeCron Foster (1978, 1980) acredita que a linguagem talvez tenha menos de 50.000 anos de existência e que ela surgiu com os primeiros impulsos em direção à arte, ao ritual e à diferenciação social. A simbolização verbal é o principal meio de estabelecer, definir e manter o mundo cultural e de estruturar nosso próprio pensamento.

Tal como Hegel disse algures, questionar a linguagem é questionar o ser. É muito importante, contudo, resistir a esse tipo de exagero e considerar a distinção, em primeiro lugar, entre a importância cultural da linguagem e as limitações que lhe são inerentes. Sustentar que tanto nós quanto o mundo somos nada além de criações linguísticas é apenas uma outra maneira de se dizer o quão penetrante e controladora é a cultura simbólica. Mas a afirmação de Hegel vai longe demais, e a declaração de George Herbert Mead (1934) de que para se ter uma mente é preciso que haja uma linguagem é igualmente hiperbólica e falsa.

A linguagem transforma o sentido e a comunicação, mas não é sinônima em relação a eles. O pensamento, tal como Vendler (1967) o compreendeu, é essencialmente independente da linguagem. Estudos de pacientes e de outras pessoas às quais faltam todos os aspectos da fala e da linguagem demonstram que o intelecto permanece vigoroso mesmo na ausência desses elementos (Lecours e Joanette, 1980; Donald, 1991). A afirmação de que a linguagem facilita enormemente o pensamento também é questionável, já que experimentos formais com crianças e adultos não demonstraram isso (G. Cohen, 1977). A linguagem claramente não é uma condição necessária para o pensar (vide Kertesz, 1988; Jansons, 1988).

A comunicação verbal é parte do movimento de afastamento em relação a uma realidade social cara-a-cara, tornando possível a separação física. A palavra sempre interpõe-se entre as pessoas que desejam conectar-se umas com as outras, facilitando a diminuição daquilo que não precisa ser falado para ser dito. Que nós decaímos a partir de um estado não-linguístico começa a parecer um ponto de vista sensato. Essa intuição pode estar por trás do juízo de George W. Morgan em 1968 de que “Nada, de fato, está mais sujeito à depreciação e à dúvida em nosso mundo desencantado do que a palavra.”.

A comunicação fora da civilização envolvia todos os sentidos, uma condição ligada aos traços-chave de abertura e de partilha que caracterizam os coletores-caçadores. A alfabetização nos levou à sociedade dos sentidos divididos e reduzidos, e damos essa perda sensorial por certa, como se ela fosse um estado natural, tal como damos a alfabetização por certa.

A cultura e a tecnologia existem por causa da linguagem. Muitos têm visto a fala, por sua vez, como um meio de coordenar o trabalho, isto é, como uma parte essencial da técnica de produção. A linguagem é crucial para a formação das regras trabalhistas e comerciais que acompanham a divisão do trabalho, com as especializações e padronizações da economia nascente correndo em paralelo às especializações e padronizações da linguagem. Guiado agora pela simbolização, um novo tipo de pensamento passa a predominar, um pensamento que se realiza na cultura e na tecnologia. A interdependência entre linguagem e tecnologia é pelo menos tão óbvia quanto a interdependência entre linguagem e cultura, e resulta em um domínio acelerado sobre o mundo natural intrinsecamente similar ao controle introduzido sobre um indivíduo outrora autônomo e sensível.

Noam Chomsky, um dos principais teóricos da linguagem, comete um erro grave e reacionário ao retratar a linguagem como um aspecto “natural” de uma “natureza humana essencial”, como algo inato e independente da cultura (1966, 1992). A sua perspectiva cartesiana vê a mente como uma máquina abstrata que é simplesmente destinada a produzir feixes de símbolos e a manipulá-los. Conceitos como origens ou alienação não encontram espaço nesse tecnoesquema estéril. Lieberman (1975) oferece uma retificação concisa e fundamental: “A linguagem humana somente poderia ter evoluído em relação à condição humana total.”.

O sentido original da palavra ‘definir’ é, do Latim, limitar ou fazer findar. A linguagem parece muitas vezes causar uma oclusão da experiência, ao invés de nos ajudar a mantermo-nos abertos à experiência. Quando sonhamos, o que acontece não é expresso em palavras, assim como aqueles que se amam comunicam-se mais profundamente sem a simbolização verbal. O que foi promovido pela linguagem que realmente contribuiu para o desenvolvimento do espírito humano? Em 1976, von Glasersfeld se perguntava “se, em um tempo futuro, ainda parecerá tão óbvio que a linguagem contribuiu para a sobrevivência da vida neste planeta.”.

O simbolismo numérico também é de fundamental importância para o desenvolvimento do mundo cultural. Em muitas sociedades primitivas, era e é considerado sinal de má sorte contar criaturas vivas, uma atitude antirreificação relacionada à noção primitiva comum de que nomear outrem é obter poder sobre essa pessoa. O ato de contar, tal como o de nomear, é parte do processo de domesticação. A divisão do trabalho presta-se ao quantificável, em oposição àquilo que é pleno em si mesmo, único, não-fragmentado. O número também é necessário para a abstração inerente à troca de mercadorias e é um pré-requisito para a disparada da ciência e da tecnologia. O impulso de medir envolve um tipo deformado de conhecimento que busca o controle de seu objeto, e não a sua compreensão.

O sentimento de que “a única forma de realmente apreendermos as coisas é através da arte.” é uma opinião trivial, que realça nossa dependência em relação aos símbolos e à representação. “O fato de que originalmente toda arte era ‘sagrada’” (Eliade, 1985), isto é, pertencente a uma esfera separada, atesta seu status ou função original.

A arte está entre as primeiras formas de expressividade ideológica e ritual, desenvolvida juntamente com as observâncias religiosas planejadas para manter unida uma vida comunitária que estava começando a se fragmentar. Ela foi um meio fundamental de facilitar a integração social e a diferenciação econômica (Dickson, 1990), provavelmente ao codificar informações para registrar pertencimento a um grupo, status e posição (Lumsden e Wilson, 1983). Antes dessa época, em algum momento durante o Paleolítico Superior, dispositivos para a manutenção da coesão social eram desnecessários; a divisão do trabalho, as funções separadas e a territorialidade parecem ter sido em grande medida inexistentes. À medida que as tensões e as inquietações começaram a emergir na vida social, a arte e o resto da cultura surgiram junto com elas em resposta a sua presença perturbadora.

A arte, tal como a religião, surgiu de uma sensação original de inquietude, sem dúvida de modo sutil, mas poderosamente perturbadora em sua novidade e em sua gradação invasiva. Em 1900, Hirn escreveu sobre uma antiga insatisfação que motivava a busca artística por uma “expressão mais plena e mais profunda” como “compensação para as novas deficiências da vida.”. No entanto, as soluções culturais não lidam com os deslocamentos mais profundos dos quais as próprias “soluções” culturais fazem parte. Inversamente, tal como comentadores tão diferentes quanto Henry Miller e Theodor Adorno concluíram, não haveria necessidade de arte em um mundo desalienado. Aquilo que a arte tem se esforçado em vão por capturar e expressar seria, mais uma vez, a própria realidade, sendo relegado ao esquecimento o falso antídoto que é a cultura.

A arte é uma linguagem, assim como o ritual, evidentemente, também o é, dentre as primeiras instituições culturais e simbólicas. Julia Kristeva (1989) comentou sobre “a estreita relação entre gramática e ritual”, e os estudos de Frits Staal acerca do ritual védico (1982, 1986, 1988) demonstraram para ele que a sintaxe pode explicar completamente a forma e o significado do ritual. Tal como Chris Knight (1994) notou, a fala e o ritual são “aspectos interdependentes de um só e o mesmo domínio simbólico.”.

Essencial para o avanço do cultural nas questões humanas, o ritual não é apenas um meio de ordenar ou de regular as emoções; ele é também uma formalização que está intimamente ligada às hierarquias e ao domínio formal sobre os indivíduos. Todas as sociedades tribais e civilizações antigas conhecidas tinham organizações hierárquicas construídas sobre ou integradas por uma estrutura ritual e um sistema conceitual correspondente.

Exemplos da conexão entre ritual e desigualdade, desenvolvendo-se até mesmo antes da agricultura, são generalizados (Gans, 1985; Conkey, 1984). Os ritos cumprem uma função de válvula de segurança para a descarga de tensões geradas pelas divisões que surgem na sociedade e operam na criação e na manutenção da coesão social. Anteriormente, não havia necessidade de artifícios para unificar aquilo que ainda era, em um contexto de não-divisão do trabalho, pleno e não-estratificado.

Com frequência, se ouve dizer que a função do símbolo é revelar estruturas do real que são inacessíveis à observação empírica. Mais pertinente, contudo, em termos dos processos da cultura e da civilização, é a afirmação de Abner Cohen (1981, 1993) de que o simbolismo e o ritual dissimulam, mistificam e santificam deveres e funções penosos, fazendo-os, assim, parecer desejáveis. Ou, tal como David Parkin (1992) coloca, a natureza compulsória do ritual embota a autonomia natural dos indivíduos ao colocá-los a serviço da autoridade.

Aparentemente oposto à alienação, o contramundo dos ritos públicos estaria organizado contra a corrente da direção histórica. Mas, mais uma vez, isso é uma ilusão, já que o ritual facilita o estabelecimento da ordem cultural, alicerce da teoria e da prática alienadas. As estruturas de autoridade ritual cumprem uma importante função na organização da produção (divisão do trabalho) e promovem ativamente o advento da domesticação. As categorias simbólicas são estabelecidas para controlar aquilo que é selvagem e estranho; assim, a dominação das mulheres é perpetrada, um desenvolvimento levado à plena realização com a agricultura, quando as mulheres tornam-se essencialmente bestas de carga e/ou objetos sexuais. Parte dessa mudança fundamental é o movimento em direção ao territorialismo e à guerra; Johnson e Earle (1987) discutiram a correspondência entre esse movimento e a importância crescente do cerimonialismo.

De acordo com James Shreeve (1995), “No registro etnográfico, onde quer que se encontre desigualdade, ela é justificada ao se invocar o sagrado.”. De modo similar, todo simbolismo, diz Eliade (1985), era originalmente simbolismo religioso. A desigualdade social parece ser acompanhada pela subjugação na esfera não-humana. M. Reinach (citado em Radin, 1927) disse: “graças à magia, o humano toma a ofensiva contra o mundo objetivo.”. Cassirer (1955) expressou essa ideia deste modo: “A natureza nada produz sem cerimônias.”.

A partir da ação ritual surgiu o xamã, que foi não apenas o primeiro especialista em virtude de sua função nessa área, mas também o primeiro profissional cultural em geral. A mais antiga forma de arte foi realizada por xamãs, à medida que eles assumiram a liderança ideológica e delinearam o conteúdo dos rituais.

Esse especialista original tornou-se o regulador das emoções coletivas, e à medida que o poder do xamã aumentava, ocorria uma redução correspondente da vitalidade psíquica do resto do grupo (Lommel, 1967). A autoridade centralizada, e provavelmente também a religião, desenvolveram-se a partir da posição elevada do xamã. O fantasma da complexidade social estava encarnado nesse indivíduo que exercia o poder simbólico. Todos os líderes e chefes desenvolveram-se a partir do predomínio dessa figura na vida dos outros integrantes do grupo.

A religião, assim como a arte, contribuiu para uma gramática simbólica em comum necessária à nova ordem social e suas fissuras e aflições. A palavra é baseada no termo latino ‘religare’, atar ou ligar, e em uma raiz verbal grega que denota observância do ritual, fidelidade às regras. A integração social, exigida pela primeira vez, fica evidente como o ímpeto da religião.

A religião é uma resposta às inseguranças e tensões, prometendo resolução e transcendência por meio do simbólico. A religião não encontra base para a sua existência antes de tomarmos o caminho errado em direção à cultura e ao civilizado (domesticado). O filósofo estadunidense George Santayana sintetizou bem essa ideia com a frase: “Um outro mundo no qual viver é o que se quer dizer com a palavra religião.”.

Desde a obra The Descent of Man [A descendência do homem] (1871) de Darwin, temos a compreensão de que a evolução humana acelerou enormemente em termos culturais em um período de mudanças fisiológicas insignificantes. Deste modo, o ser simbólico não dependia de ter que esperar pelas faculdades certas para poder evoluir. Podemos perceber agora, com Clive Gamble (1994), que a intenção nas ações humanas não surgiu com a domesticação/agricultura/civilização.

Os habitantes nativos do Deserto do Kalahari na África, tal como estudados por Laurens van der Post (1976), viviam em “um estado de completa confiança, dependência e interdependência em relação à natureza”, que era “muito mais generosa com eles do que qualquer civilização já foi um dia.”. O igualitarismo e a partilha eram as qualidades distintivas da vida caçadora-coletora (G. Isaac, 1976; Ingold, 1987, 1988; Erdal e Whiten, 1992; etc.), que é mais adequadamente chamada de vida coletora-caçadora, ou o modo forrageador. Na verdade, a maior parte dessa dieta consistia de matéria vegetal, e não há evidências conclusivas de qualquer tipo de caça antes do Paleolítico Superior (Binford, 1984, 1985).

Um olhar instrutivo às sociedades primitivas contemporâneas é o trabalho de Colin Turnbull (1961, 1965) sobre os pigmeus da floresta de Ituri e seus vizinhos Bantus. Os pigmeus são forrageadores, vivendo sem religião ou cultura. Eles são vistos como imorais e ignorantes pelos Bantus – que são agricultores –, mas desfrutam de uma individualidade e de uma liberdade muito maiores. Para a irritação dos Bantus, os pigmeus zombam com irreverência de seus ritos solenes e de seu senso de pecado. Rejeitando o territorialismo, muito menos respeitando a propriedade privada, eles “movem-se livremente em um mundo social não-mapeado, não-sistematizado e sem fronteiras.”, de acordo com Mary Douglas (1973).

A vasta era anterior ao surgimento do ser simbólico é uma realidade extremamente importante e um ponto de interrogação para algumas pessoas. Comentando a respeito desse “período que se estende ao longo de mais de um milhão de anos”, Tim Ingold (1993) chamou-o de “um dos mais profundos enigmas de que se tem conhecimento na ciência arqueológica.”. Mas a longevidade dessa época estável e não-cultural tem uma explicação simples: tal como F. Goodman (1988) conjecturou, “Era uma existência tão harmoniosa, e uma adaptação tão bem-sucedida, que ela não se alterou materialmente por milhares de anos.”.

A cultura enfim triunfou com a domesticação. O âmbito da vida tornou-se menor, mais especializado, separado à força de sua graça anterior e de sua liberdade espontânea. O ataque da orientação simbólica contra o natural também teve consequências exteriores imediatas. Desenhos rupestres primitivos, encontrados há 200 quilômetros de distância do córrego mais próximo registrado no Saara, mostram pessoas nadando. Os elefantes ainda eram relativamente comuns em certas zonas da costa do Mediterrâneo em 500 a.C., de acordo com Heródoto. O historiador Clive Ponting (1992) mostrou que todas as civilizações reduziram a saúde de seu meio ambiente.

E o cultivo definitivamente não ofereceu uma base alimentar mais confiável ou de maior qualidade (M. N. Cohen, 1989; Walker e Shipman, 1996), muito embora ele tenha introduzido doenças de todos os tipos, quase totalmente desconhecidas fora da civilização (Burkitt, 1978; Freund, 1982), bem como a desigualdade sexual (M. Ehrenberg, 1989; A. Getty, 1996). A obra Book of the Hopi [O livro dos Hopis] (1963) de Frank Waters nos oferece um retrato impressionante de uma divisão do trabalho descontrolada e da pobreza do simbólico: “Cada vez mais eles negociavam em troca de coisas das quais não precisavam, e quanto mais bens adquiriam, mais eles queriam. Isso era muito grave. Porque eles não estavam se dando conta de que estavam se afastando, passo a passo, da boa vida que haviam recebido.”.

Um capítulo pertinente da obra The Time Before History [A época antes da História] (1996) de Colin Tudge leva um título que fala por volumes inteiros: “The End of Eden: Farming” [O fim do Éden: a agricultura]. Uma distinção epistemológica subjacente é em grande medida revelada neste contraste traçado por Ingold (1993): “Em suma, enquanto para os agricultores e pastores a ferramenta é um instrumento de controle, entre os caçadores e coletores ela seria mais bem compreendida como um instrumento de revelação.”. E cabe citar Horkheimer (1978), em termos dos custos psíquicos da domesticação/dominação da natureza: “a destruição da vida interior é a pena que o humano tem que pagar por não ter respeito por qualquer outra forma de vida que não a sua própria.”. A violência voltada para fora é ao mesmo tempo infligida espiritualmente, e o mundo exterior é transformado, degradado, tão certamente quanto o fato de que o campo perceptivo foi submetido a uma redefinição fundamental. Com certeza, a natureza não instituiu a civilização; pelo contrário, a civilização impôs-se à natureza.

Hoje em dia está na moda, para não se dizer que é obrigatório, afirmar que a cultura sempre existiu e sempre existirá. Muito embora seja o caso, demonstravelmente, que houve uma era humana não-simbólica extremamente longa, talvez cem vezes mais longa do que a era da civilização, e que a cultura tenha se desenvolvido tão-somente às custas da natureza, se ouve de todos os lados que o simbólico – tal como a alienação – é eterno. Portanto, questões como a das origens e dos destinos não fazem sentido. Nada pode ser perscrutado para além do nível semiótico no qual tudo está aprisionado.

Mas os limites da racionalidade dominante e os danos causados pela civilização saltam por demais aos olhos para que aceitemos esse tipo de subterfúgio. Desde o predomínio do simbólico, os humanos têm tentado recuperar, através da participação na cultura, a autenticidade que outrora vivenciávamos. O impulso ou a busca constantes pelo transcendente evidenciam que a hegemonia da ausência é uma constante cultural. Tal como Thomas McFarland (1987) declarou: “a cultura presencia essencialmente a ausência de sentido, não a sua presença.”.

O consumo massivo e insatisfatório, dentro dos ditames da produção e do controle social, impera como o principal consolo cotidiano para essa ausência de sentido, e, certamente, a cultura é ela mesma uma preferência de consumo de primeira ordem. Em seu nível mais fundamental, é a divisão do trabalho que impõe nossa totalidade simbólica falsa e mutiladora. “O aumento da especialização […]”, escreveu Peter Lomas (1996), “mina nossa confiança em nossa capacidade habitual de viver.”.

Somos capturados pela lógica cultural de objetificação e pela lógica objetificadora da cultura, de modo que aqueles que sugerem novas formas de ritual e outras formas de representação como o caminho para uma existência reencantada perdem completamente o fio da meada. Mais daquilo que falhou durante tanto tempo dificilmente pode ser a resposta. Lévi-Strauss (1978) referiu-se a “um tipo de sabedoria [que os povos primitivos] praticavam espontaneamente, cuja rejeição pelo mundo moderno constitui a verdadeira loucura.”.

Ou a saúde não-simbólica que outrora existia, em todas as suas dimensões, ou a loucura e a morte. A cultura nos levou a trair nosso próprio espírito e nossa própria plenitude aborígines, rumo a um reino cada vez pior de alienação sintética, isoladora e estéril; o que não quer dizer que não haja mais prazeres cotidianos, sem os quais perderíamos nossa humanidade. Mas à medida que nossa crise se aprofunda, vislumbramos o quanto precisa ser eliminado em prol de nossa redenção.

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